sábado, 2 de fevereiro de 2008

A APLICAÇÃO DOS MANUAIS ESCOLARES

Extracto de Dissertação de Mestrado:
História da Educação em S. Tomé e Príncipe
Por: Jerónimo Xavier de Sousa Pontes

A aplicação dos materiais escolares, segundo a avaliação do relatório da Gulbenkian/MEC, foi passando de medíocre para suficiente. No entanto, por o sistema ser uma reprodução do modelo social no qual um pai não consegue garantir o sustento adequado à família, que fará custear os estudos dos filhos, então, os Manuais de Língua Portuguesa produzidos em cooperação entre Portugal/S. Tomé e Príncipe, através da Fundação Calouste Gulbenkian, são depositados na escola, a fim de serem gratuitamente cedidos aos alunos carenciados, a título de empréstimo. Ao longo do ano é assim que ainda funciona. O aluno não é dono do material, mas sim o Estado. Logo o valor afectivo imposto nesse tipo de relação não seria o mesmo, se o livro fosse do próprio aluno. É uma hipótese já avançada em Portugal recentemente, mas que não vingou. Pretendia-se com isto resolver o problema de financiamento de manuais aos alunos mais carenciados, afectos a SASE ([1]).

Um dos materiais didácticos de maior relevância no Ensino Secundário depois da Independência, foi o caderno diário. Funcionou durante muito tempo como substituto dos manuais escolares para todas as disciplinas. Normalmente, os professores, após a escrita do sumário, a única metodologia que dominavam era ditar os apontamentos, que os alunos muitas vezes escreviam da maneira como entendiam. Então os erros sucediam-se, principalmente da parte dos que faltavam. Era sistemático cometerem-se muitos erros ainda, quando copiavam dos colegas que provavelmente escutaram e escreveram mal, ou porque o próprio professor ditou, pronunciando incorrectamente determinadas formas.

O material didáctico produzido pela Gulbenkian, no fim de algum tempo, quer os cadernos de apoio dos professores quer os dos alunos, desapareceram na totalidade. Os docentes que ainda conservavam algum exemplar, não os facultavam aos colegas que iriam entrar pela primeira vez no sistema.
Os actuais manuais de Língua Portuguesa do Ensino Secundário não passam de uma colectânea de textos de vários autores, sem qualquer caderno de apoio do professor ou do aluno.
Durante todo o 1º período e quase metade do 2º, não se utilizam quaisquer textos do manual. Esta situação verifica-se porque os conteúdos programáticos da unidade temática foram alterados, o que veio a provocar o baixo nível de aproveitamento registado em torno da competência e performance linguística dos alunos. Actualmente, praticamente não existe qualquer manual escolar em nenhuma das disciplinas do curriculum em S. Tomé e Príncipe. Dos poucos manuais de Língua Portuguesa existentes, têm permitido que alunos andem de salas em salas pedindo livros emprestados.

O ensino centrado no caderno diário que contribuiu irremediavelmente para a degradação do uso da Língua Portuguesa, durante os primeiros anos da independência, regressou em força.
Contrariamente ao que se poderia supor, o Ministério da Educação de S. Tomé e Príncipe recebeu da UNESCO uma importante verba para fins do cumprimento dos objectivos da EPT 2000-2015, mas a situação mantém-se. Entretanto o novo Embaixador de Portugal, para o Ano Lectivo de 2004/2005, através do Sector cultural da representação Portuguesa, mandou reeditar os antigos manuais, esperando colmatar as lacunas ora existentes.

Sobre a evolução da história dos Manuais Escolares em S. Tomé, atentemos na análise do manual LEITURAS COLONIAIS, de Albano Alberto de Mira Saraiva e Carlos Rosa Machado de Faria, a fim de compreendermos como se organiza, estrutural e ideologicamente.

Este livro de leitura (manual) inicia-se com uma advertência: são falsos todos os exemplares que não tenham esta rubrica Albano A. de Mira Saraiva[2], seguida de uma dedicatória: “Redacção do Boletim À Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa Of. Albano Alberto de Mira Saraiva, Lxª 12 – XII – 33”. Precede-se-lhe uma chamada de atenção, em jeito de “Prefácio para a gente grande” (p. 4).

A elaboração deste manual, por particulares, é uma resposta ao decreto de 1929, publicado pelo Ministério da Instrução, determinando que fosse intensificada a sua aplicação em todas as escolas do Ensino Colonial, mas terá ficado letra morta, por falta de apoio do Estado. O manual Leituras Coloniais não recebeu qualquer patrocínio da parte do Estado Português.

Este pequeno apontamento realça a preocupação dos autores da obra, face à contrafacção; o papel do Estado enquanto financiador do sistema educativo; e o reconhecimento das intervenções do sector privado, enquanto patrocinador das actividades lectivas.

No respeitante à estrutura do Manual, infira-se:
Quanto à forma, existe um Prefácio com breves notas do autor. Depois segue-se um mapa. O papel do Mapa – um Planisfério – é bastante elucidativo. Era para mostrar, não só o percurso do Joaquim em viagem, como também para localizar as possessões portuguesas nos mais variados cantos do mundo. De seguida, vem a Introdução, onde se procedeu a um sumário crítico, explicitando o objectivo do livro e a importância do seu incremento.

Os Textos foram criteriosamente seleccionados e adaptados ao contexto linguístico, sociocultural, didáctico e pedagógico dos alunos, nas categorias de - informativos, narrativos, didácticos, poéticos - (especificamente sobre cada país visitado, e “Ainda duas palavras sobre os autores”). O livro termina com um exaustivo levantamento vocabular, o índice e o posfácio.

Quanto ao conteúdo, o livro fala-nos da Leira do Joaquim; da localização geográfica dos países do ultramar; dos feitos heróicos portugueses; da fauna; da flora, e das riquezas do solo e do subsolo).
Trata-se dum livro de leitura dirigido às crianças, mas que, curiosamente, apresenta um prefácio destinado aos adultos, referindo que “Não é este Prefácio destinado aos pequenos leitores dêste livro, que a êsses só os interessará o Joaquim, o protagonista do livro (...) ”. Diz que o prefácio “é para os pais dos pequenos e ainda para os professores que, com o auxílio doutros, serão na escola primária os iniciadores duma grande obra”.

O livro tinha como objectivo dotar os alunos, pais e professores de um instrumento didáctico e pedagógico, base de orientação para um estudo organizado, estruturado, sistematizado e coerente. E, para que os alunos não se sentissem desapoiados, segundo as pretensões dos autores, como que recorrendo ao jogo ideológico, dedicaram o prefácio da obra aos seus mais directos destinatários: aos pais e aos professores. Isto porque, enquanto os pais representam a imagem tradicional da família, os professores servem de veículo ideológico do poder.

Os autores do manual reconheceram entretanto que, não obstante tivessem produzido um instrumento de inegável valor, a obra pareceu-lhes incompleta, carecendo ser completada com recurso às obras doutros escritores – o que realça efectivamente o papel de um livro de leitura e nunca algo hermeticamente cingido sobre si mesmo.

Os meninos são enquadrados nesta história/estória como o conjunto das relações entre diferentes membros dum grupo sociográmico ([3]); pois “Aos meninos, cabe a História do Joaquim” – há um aspecto Ideológico subjacente a esta expressão: os meninos não podem entrar prematuramente no mundo dos adultos. Quando isto acontece, revelam-se frustrados; pois chegada a idade adulta, compreenderão que não terão vivido a sua infância. Não deixa de se constituir numa chamada de atenção para os adultos: não devem utilizar os manuais para veicularem as suas aspirações, sejam elas de que naturezas forem. Por isso, aos “meninos, cabe a história do Joaquim”.

O protagonista da história é aquele cuja missão é narrar às outras crianças as peripécias de uma viagem espectacular pelo imenso mundo português, ao encontro de outras terras, outros povos, outros hábitos e costumes, a fauna, a flora, a orografia.

Ao nível sociocultural, tratar-se-á de uma viagem ao encontro de culturas, que poderá ser vista, nesta análise, na perspectiva em que ela aconteceu. Com o efeito, o propósito da excursão visava “Ensinar as crianças portuguesas a conhecerem e amarem êsses múltiplos espaços de Portugal a que chamamos colónia”, tendo em atenção:

· o aspecto ideológico – “os seus autores dão, pela sua competência e pelo seu patriotismo, sólidas garantias de que o livro corresponde aos seus elevados propósitos”.

· a capacidade pedagógica dos seus autores, aliada à experiência obtida In loco - “o inspector escolar Mira Saraiva trouxe para o livro a sua competência pedagógica, o coronel Roma Machado (...) o seu saber e experiência sobre as colónias portuguesas”.

· a política educativa e o financiamento do Estado - o fraco poder interventivo do Estado na incrementação da política educativa “são devidos particular elogios aos autores dêste livro pois meteram hombros à sua publicação sem nenhum apoio oficial, com a única ambição de bem servir”.

· o ideal expansionista - dar aos portugueses de Aquém e Além Mar os ensinamentos de mútua compreensão que colidem, não só no domínio sentimental, mas também no das realidades, o espírito de uma nacionalidade cujas terras se alargam por quatro continentes.

· o exotismo – toda a obra se centra numa viagem tipo Piloto Anónimo, Marco Polo, ou Fernão Mendes Pinto – há um europeu que viaja para um espaço extra-europeu, e delicia os que nunca lá estiveram com estórias fantásticas. Mas a viagem em si estava carregada de uma elevada simbologia, pois tratava-se do privilégio que se assistia àqueles que se esforçavam: o menino europeu bem comportado que ascende na vida por obediência, e vai visitar uma grande parte da herança do povo português espalhada pelo mundo.

A ideologia é veiculada através de textos, nos quais em tudo o homem branco, por mais que esteja em apuros, vence (- veja-se p. ex. o ataque dos negros armados com azagaias contra um branco (p.124)).

Os casos mais paradigmáticos neste manual são, por exemplo, a história do “Feitor Mau” (pp. 44-45); “Amigos de Infância” (p. 79), e “Terras Africanas” (pp. 104 a 108). São estórias sobre usos e costumes dos indígenas. Nelas, evidencia-se a tentativa de conversão das crianças negras ao catolicismo, nas quais se realça, implicitamente, a temática da antropofagia, e das crenças populares. A temática do “bom selvagem” é evidenciada através da caracterização física e psicológica do indígena. A deformação dos indígenas por meio de caricaturas é uma evidência em todo o manual.

Contrariamente aos outros espaços, devidamente observados na obra, chega-se a desconfiar das intenções dos autores textuais sobre Cabo-Verde e S. Tomé e Príncipe. Há subtileza na descrição do espaço, na selecção das ilustrações e na forma como os autores da obra lidaram com a temática do crioulo de Cabo-Verde. Não nos admiremos pois, que essas ilhas tenham sido criadas para funcionar à imagem e semelhança de Portugal, só que a História encarregou-se de lhes mudar o rumo. A africanização acentuou-se muito mais em S. Tomé e Príncipe do que em Cabo-verde.

Na obra Leituras Coloniais, “o rural é o espaço de referência dominante, objecto de descrições nas quais predominam retratos de uma natureza pujante e bela” – a flora santomense, as tabancas da Guiné-Bissau, o sertão angolano e moçambicano. Intercalam-se outras estórias em jeito de excertos que se complementam com cenas do quotidiano. Mostram sentimentos de desejo, cenas furtivas de incursões de caça, pesca, etc., assim como as diferentes formas de manifestações culturais. No retrato, o quotidiano é realçado através das produções agrícolas, das habitações tradicionais, das aulas ao ar livre. Tudo isto em conjunto apresenta uma outra faceta da realidade. Ainda que idilicamente, é evidenciada uma grande falta de investimentos por parte de quem tutela: os homens, as mulheres, as crianças, as construções sem um mínimo de condições, foram habilidosamente focados.

Ao longo do manual, houve a preocupação de se apresentar, em jeito de síntese, narrativas de eventos históricos, assim como actos de heroísmo praticados por dever patriótico: descrições de lugares, textos de autores com ligação afectiva a cada país, o que anunciava uma nova postura no campo ideológico.

Ao nível temático predomina a mitologia da Expansão Marítima com a correspondente alegoria visionária: a caravela, o padrão, o soldado, o exotismo do espaço conquistado, o forte, e a figura sacralizada do evangelizador.

Na dimensão épica, a espiritualidade telúrica é expressa na defesa e conservação da Pátria. Muitas vezes, nessas manifestações em que se realçam a grandiosidade de um espírito nacional, pode ganhar dimensões satíricas, como acontece neste poema inserto na obra:

Que importa ao Portugal, que Camões
Cantou, o desvairado gesto dumas dúzias
De maus portugueses? Meus filhos, nes-
tes momentos de desgraça e desânimo
que os Lusíadas nos sirvam de Bíblia:
Rezai por eles e desta oração a vossa
Alma sairá desanuviada, cheia de orgu-
Lho e bem crente na eternidade do nome
De Portugal.

Que eu canto o peito ilustre Lusitano
A quem Neptuno e Marte obedeceram:
Cesse tudo o que a antiga musa canta
Que outro poder mais alto se levanta (
[4]).

O aluno Joaquim incorpora em si as formas de uma contemplação mítica, de um envolvente impulso regressivo, de uma devoção telúrica, enfim de uma procura, no fundo, doutrinal, das raízes ocultas do carácter nacional, sobretudo uma elevação quase corpórea perante os desafios da colonização.

Globalmente, em As Leituras Coloniais, verifica-se que em quase toda a sua extensão se faz conduzir por um leitmotiv “indígena”; ou a um objecto, “a terra” ou a um sentimento, “a religião” – ideologia colonialista, incarnada no Joaquim da Leira.

O conceito indígena assume uma dimensão polissémica, isto é, ambígua, a partir de uma determinada altura. Anteriormente, poder-nos-ia remeter para uma situação de miséria, pobreza absoluta (indivíduos absolutamente pobres), mendigos, pessoas que viviam de extrema necessidade e de carência mental ou intelectual. Por outro lado, e sintomaticamente, significava autóctone de um dado país, sem qualquer semântica pejorativa – será nesta ou naquela acepção que o estado de indigenato é realçado, implícita ou explicitamente, em toda a dimensão da obra. As culturas e os costumes indígenas são alvos de caricatura, cingindo-se a uma representação burlesca de pessoas ou acontecimentos para os ridicularizar, quer pelo seu aspecto quer pelos modos, se atentarmos nas ilustrações e nas estórias fantasiadas nela expressas – tudo para fins didácticos e pedagógicos.

A figura do professor, ao longo da obra, enquadra-se na perspectiva de um indivíduo sabedor, de grande mérito e respeitabilidade, chegando a desempenhar uma função extremamente importante na hierarquia familiar do aluno. O professor apresenta-se num plano superior ao do próprio pai. É a ele quem cabe as decisões mais importantes, como no caso do Joaquim da Leira, e só depois as comunica aos pais do aluno.

O exotismo é aqui referenciado na apresentação dos hábitos e costumes de países de climas diferentes do da personagem. Assim, o que é exótico passa a ser conotado com aquilo que é de fora, do estrangeiro ou que tivesse que ver com costumes estrangeiros, esquisito - extravagante, aos olhos do visitante (p.124). Mas a linguagem utilizada não indicia qualquer intenção etnocêntrica. Só o percebemos a partir de uma leitura em perspectiva.

T oda a temática do manual é apresentada em termos do ruralismo (p.11). As personagens apresentam-se todas descalças – uma possível ou casual analogia com o menino negro (p.81) na sala de aula que contrasta com a da escola da (p.115).

Para além do manual em análise, ao longo do colonialismo, vários outros manuais terão sido adoptados pelo Ministério da Instrução na monarquia e pelo Ministério da Educação na República Portuguesa.

Em 1941, é adoptado o livro da 1ª classe como “livro único” nas escolas primárias portuguesas. Isto aconteceu durante largo período da Ditadura Nacional (1ª edição, da Livraria Sá da Costa).
Em 1944, a Livraria Popular de Francisco Franco, publica, sob autoria de Santos Lameirão e Frutuoso de Carvalho (professor do Ensino Técnico e Profissional), um livro de leitura de Língua Portuguesa, intitulado Aquém-e-Além-Mar, com um extenso subtítulo: “Esta é a ditosa pátria minha amada” - Selecta Portuguesa, 1ª Parte (1º e 2º ano), 6ª edição, para uso dos alunos das Escolas de Ensino Técnico Profissional.

Em 1958, o Ministério da Educação Nacional edita o Livro da 2ª classe (6ª Edição), da Educação Nacional, de Adolfo Machado.

Tanto o livro da 1ª como o da 2ª classe, ambos apresentavam uma organização estrutural bem delineada, mais adequada às idades das crianças. Nesses manuais, por acaso muito bem elaborados, para além da leitura dos textos que proporcionavam, havia atractivos outros que tinham que ver com as ilustrações. A ilustração surge-nos como uma componente visual de inegável relevância, possibilitando aos alunos a ligação entre o concreto e o abstracto – a ilustração, entenda-se, um processo que visa esclarecer, fazer compreender uma ideia, um conceito, um pensamento, um texto, por imagens (a imagem diz respeito ao ensino na sua qualidade de:

- reprodução duma percepção na ausência do objecto que a provocou
- visão interior, muitas vezes subjectiva, aparentada com a recordação, ou representação duma coisa, dum ser
- reprodução dum objecto por actos gráficos ou plásticos, pelas técnicas audiovisuais), exemplos, explicações ([5])

Sobre os manuais aplicados no colonialismo e no pós-colonialismo, atentemos agora nalguns extractos desses manuais, aplicados em S. Tomé e Príncipe, tendo em conta o enquadramento temático:

(No colonialismo)
a) religioso:

Foi Deus,
Meu amor!

- Mãezinha, quem fez as árvores?
Quem pintou o azul dos céus?
Quem fez as serras e os montes?
Quem fez os rios e as fontes?
- Meu amorzinho, foi Deus.

b) do quotidiano laboral:

A dona de casa

Emilita é muito esperta e desembaraçada, e gosta de ajudar a mãe.
- Minha mãe: Já sei varrer a cozinha, arrumar as cadeiras e limpar o pó.
Deixe-me pôr hoje a mesa para o jantar.
- Está bem, minha filha. Quando fores grande, hás-de ser boa dona de casa.

c) dos costumes:

Dizei a verdade

- A minha filha não se senta à mesa, porque ainda não lavou as mãos.
- Minha mãe, lavei-as mesmo agora.
A mãe pega nas mãos da Olga, examina-as e olha demoradamente para a filha.
Esta compreende os olhares da mãe e diz-lhe:
- Minha mãe! Desculpe. Eu vou já lavá-las...

d) de amor à Pátria:

Viva Portugal
é a nossa Terra.
é a mais linda de todas as Terras
do Mundo!.

Todos esses manuais normalmente dividiam-se em dois grandes blocos: um para o exercício ou prática da leitura e interpretação, outro reservado à aritmética. Tudo isto fazia parte da estratégia do livro único, introduzido durante o governo do Estado Novo. A parte reservada à aritmética da 1ª classe, relacionava-se com a composição e decomposição de números, conhecimento dos algarismos, a noção de zero, a numeração, a noção de dezena, a adição ou soma, com transporte, de dois dígitos; soma, sem transporte, de dois compostos; as subtracções sem empréstimo e com empréstimo; a multiplicação e a concretização da tabuada, a multiplicação, com transporte, de um composto por um dígito; a divisão de um dígito por outro; divisão, com transporte, de um composto por um dígito, e exercícios vários de aplicação sob formas de problemas.

Na segunda e na terceira classes, repetia-se a estrutura do manual da 1ª classe, mas com conteúdos mais adequados a estes níveis. Já na 4ª classe, havia uma melhor elaboração e controlo das actividades, pois tratava-se de classe terminal. Com a 4ª classe podia-se prosseguir os estudos no exterior, podia-se entrar para o funcionalismo público, podia-se obter a carta de condução, etc. Tempos houve que, com este grau de ensino ou mesmo com uma simples 3ª classe, se admitiram candidatos no curso de enfermagem. Na altura havia os tais exames do 1º e do 2º grau, dos quais muitos professores do ensino primário antigo não possuíam mais do que o 2º grau.

Com o andar dos tempos, os manuais escolares foram-se especializando e as sucessivas mudanças políticas obrigaram a alterações de atitude dos governantes de Lisboa. Porém, no que respeita à política ultramarina, os temas neles desenvolvidos, pouco ou nada se alterou, sobretudo quando o assunto fosse Religião, Pátria ou Família.

A questão da manutenção de temas como Deus, Pátria e Família nos manuais escolares era um recurso ideológico importante, a partir do qual o povo era regido à base da cega obediência. Por isso, e por se tratar de uma matéria deveras sensível do ponto de vista da reivindicação do homem negro, os movimentos negritudinistas tornaram-se mais exigentes. Quando as posições se extremaram, os sinais de cedência começaram fazer-se sentir. Mas as alterações só se verificaram ao nível estético, tendo-se esfumadas as caricaturas e aspectos que indiciassem o etnocentrismo.

Os temas relacionados com as possessões portuguesas em África são recuperados a partir de uma integração plena desses espaços, deixando de constituir refúgios para fins exclusivamente de lazer. De qualquer maneira, nesses espaços exóticos, o outro é também português, mas o seu estatuto de africano era manifestamente suficiente para suscitar atitudes como a que ilustra o excerto do manual da 4ª classe (pp. 51-52), durante o período do Estado Novo:

Dois Portugueses

No recreio, os meus alunos brincavam. Eu, perto, vigiava-os.
Na escola, havia dois pequenitos angolanos, mulatos, inteligentes e de que todos os seus condiscípulos eram amigos. Frequentavam a 4ª classe e o seu comportamento era exemplar.
O pai, abastado proprietário em Angola, havia sido já meu aluno. (...).
Em certo momento, ouvi por trás de mim conversa animada. Voltei-me e vi um deles a discutir com o seu companheiro de classe. Dizia este:

- És português de Angola...
- Mas sou português...- retorquiu o meu aluno de cor.
- Mas eu sou português de Portugal!
- Mas eu também sou português – insistia o pequeno angolano, mas já com um certo receio na voz.
- Mas nasceste em África eu é que sou bem português – replicou o companheiro, com uns certos ares de superioridade e orgulho.
- Eu também sou português – repetia, teimosamente, o outro, cada vez mais triste.
Aproximei-me. Pus cada uma das mãos sobre os ombros dos meus dois alunos, aproximei-os mais um do outro e disse-lhes:
- Manuel, tu, afinal, não tens razão nenhuma em quereres ser mais português do que o Luís. Nascer em Angola é nascer em Portugal. Não digas que o Luís é português de Angola e tu és português de Portugal.
- Mas ele nasceu em África. Eu é que sou bem português – ia a retorquir Manuel.
- Pois nasceu, e pode sentir-se tão orgulhoso
disso como tu de nasceres na cidade do Porto.

“D. E”

A partir dos meados dos anos 50 do século XX são introduzidas novas alterações na elaboração dos manuais escolares. As ilustrações, que a tudo remetiam para o cómico de linguagem e de situação, são substituídas por outras mais pomposas. A metodologia adoptada para a elaboração dos manuais escolares sofreu alterações significativas, mantendo-se porém canonizados aspectos de relevância político-ideológica.

A problemática da ideologia mantém-se através da temática da valorização dos feitos históricos, da exaltação do poder através das proeminentes figuras como a do Professor António de Oliveira Salazar, a do seu sucessor, o Contra-Almirante Américo Tomás e a do Presidente do Conselho, o Senhor Doutor Marcelo Caetano.

Do Doutor Oliveira Salazar, saíram estas célebres expressões: ”obedece e saberás mandar”; “Mandar não é escravizar; é dirigir. Quanto mais fácil for a obediência, mais suave é o mando” – slogans ideológicos como estes, predominaram os manuais escolares da época.

Um dos aspectos ideológicos patentes na obra (livro de leitura da 4ª classe) relaciona-se com a forma como as capitais das ex-colónias são exibidas nas ilustrações. São apresentadas, quer do ponto de vista arquitectónico quer do ponto de vista sociocultural, como uma autêntica metrópole, inserida no continente africano, deixando transparecer, de facto, um Portugal uno e indivisível. Essas representações sustentavam a tese de um Portugal multirracial e pluricontinental.

A partir da década de 50, começa-se a notar alguma preocupação no campo educativo, pois as exigências dos tempos modernos assim o determinavam. Por exemplo, pese embora os manuais da Língua Portuguesa, de uma maneira geral, estruturalmente mantivessem alguma homogeneidade, os do ensino Preparatório “Telescola” (1970-1972), eram inequivocamente de substancial inovação.

A partir do ano lectivo de 1969/70, os manuais escolares que eram editados e distribuídos pelo Ministério da Educação Nacional (Pt) e por outras editoras (Pt), passam a ser editados na província ultramarina de Angola, a cargo da Editora Lello e Irmão.

Com a queda do regime colonial, a implementação dos manuais coloniais cessa. Após a ascensão do país à independência em 12 de Julho de 1975, assiste-se a partir daí a uma reacção por parte dos novos dirigentes no que se refere à produção e comercialização de manuais escolares.

Os primeiros manuais escolares, pós-independência, começaram a ser produzidos inicialmente em 1976 pelo INED (Instituto Nacional da Educação e Desportos) somente para o Ensino Primário. Com o apoio técnico cubano, no ano lectivo de 1978/79, reestrutura-se melhor o sector educativo, introduzindo-se os novos manuais.

O manual escolar de Língua Portuguesa da 1ª classe intitulava-se, O MEU LIVRO DE LEITURA. O manual inicia-se com uma dedicatória aos pioneiros:

(Pós-colonialismo)

CAMARADA PIONEIRO

Colocamos este livro
Nas tuas mãos
É um maravilhoso
Instrumento de trabalho
Para a tua educação
Cuida dele com carinho
Pois os companheiros mais novos
Esperam recebê-lo das tuas mãos.
Obrigado

É interessante verificar que o termo “Pioneiro”, retirado do contexto político, é reinterpretado na semântica educativa como aquele que segue, que reproduz os modelos ideológicos instaurados. Por isso, o pioneiro era uma ponte de ligação entre a política e a escola. Representava a escola em cerimónias políticas, e representava a política nas cerimónias escolares.

Outros temas similares povoam o manual, como por exemplo os da política militante:

· Dia dos trabalhadores
· O dia 1 de Junho
· 12 de Julho
· O nosso País é livre
· O Dia 19 de Setembro
· O dia 30 de Setembro
· Os símbolos da Pátria
· Hino dos Pioneiros do MLSTP/OPSTEP
([6])

Para além dos conteúdos de natureza política, encontramos também, ao longo dos manuais escolares do período pós-independência, abundantemente, temáticas do âmbito sociocultural, da higiene e da saúde.

A) temática sociocultural

O Celestino e o Adriano são da cidade de Santana.
Quando querem passear, um assobia ao outro.
No domingo passado (,) deram um passeio à cidade capital. Passaram pelo Parque Popular onde viram dançar Ússua, Socopé e jogar (a) Cacete.
Assim, passaram uma tarde alegre. A Ússua, o Socopé e o jogo do Cacete são cultura do nosso Povo.

B) temática da higiene

A Higiene

Ao acordar (,) a Olívia grita para a mãe:

- Mãe, mãe! Já é tarde, tenho de ir à escola.
- Ainda é cedo, minha filha, levanta-te e arranja-te com calma.
Ela levanta-se e vai à casa de banho.
Em seguida, veste-se e penteia-se com cuidado para não deixar cair os cabelos no chão.
A mãe chama-a para tomar o pequeno-almoço.
Depois disso vai à casa de banho lavar a boca evitando assim que os dentes se estraguem.
Ao sair, despede-se da mãe e vai para escola».

C) Temática da saúde:

Ao sair da escola, o Ismael pergunta ao Vilhete:
- Já sabes que existe uma ervanária no nosso País?
- Sei, sim.
- Como é que ela se chama?
- Ela chama-se ervanária Ginseng.
- E o que é uma ervanária?
- A ervanária é uma casa comercial onde se vende(m) produtos feitos com ervas medicinais.
Esses produtos curam muitas doenças tais como: diabete(s), anemias, hepatite(s), tuberculose e outras mais.
Nesta casa (,) vende(m)-se também plantas medicinais da nossa terra, ou não?
- Não. Mas se ainda não se vende(m), devemos trabalhar para que (isto) aconteça.

O manual da primeira classe, fruto da cooperação entre a Fundação Calouste Gulbenkian e o MEC (STP) vem alterar significativamente a redacção dos textos, adequando-os à nova metodologia, a do Português Língua Segunda.

Tanto para o manual substituído como para o actual, os actores tiveram o cuidado de seleccionar as ilustrações e adequá-las ao conteúdo do texto. Comparando o manual da 1ª classe de 1979 ao de então, poder-se-á inferir que as matérias de ensino foram drasticamente reduzidas, satisfazendo os critérios adoptados para a implementação da metodologia do Português Língua Segunda.

Com a implementação dos manuais produzidos pela Gulbenkian/MEC (STP), dados recentes confirmam a sua caducidade, requerendo a sua urgente substituição a todos os níveis. Isto porque, se se está a verificar uma acentuada degradação no ensino da Língua Portuguesa e sua consequente repercussão no hábito linguístico da população estudantil ao nível da escrita e da oralidade. Esta situação só pode ter uma explicação: ou os manuais são produzidos não atendendo ao tempo de duração, ou então a parte económica que deveria sustentar a sua renovação não terá sido garantida. Não havendo dados que confirmem esta posição, tudo leva a crer que esses manuais já terão mais de 10 anos, após a sua adopção.

Um outro aspecto que empobrece os manuais de Língua Portuguesa em S. Tomé e Príncipe tem que ver com a parte ilustrativa. Nos manuais da 5a e 6ª classes do Ensino Secundário Básico, as ilustrações não ajudam na captação da atenção. As ilustrações são, na globalidade, a preto e branco, o que não estimula a atenção.

Os manuais da 5ª e 6ª classes, do ponto de vista pedagógico, provavelmente terão sido elaborados sob a dinâmica orientadora da nova pedagogia, sem realçar qualquer aspecto ideológico.

Na 6ª classe, o manual é composto por 8 unidades temáticas, para além da parte preambular, onde são apresentados exemplos de textos informativos sobre os conteúdos da lição.

As 8 unidades temáticas centram-se em torno dos seguintes itens: A Escola, A Família, OS Amigos, A Escola e Comunidade, OS Tempos-Livres, A Comunicação, O País, O Prazer de ler.

Todos os temas tratados no manual, embora já tenham sido referenciados em vários contextos educativos, a abordagem actual pouco difere da dos produzidos durante o colonialismo e pós-colonialismo. Os textos vão desde os clássicos como Almada Negreiros, José Mauro de Vasconcelos, Virgílio Ferreira, Pepetela, Teixeira de Sousa, ou Rui Cinatti, até aos modernos como Manuel Rui e Albertino Bragança.

Agora, vejamos, a partir dos excertos abaixo, algumas passagens dessas temáticas:

A) Escola
A escola

Pede-se a uma criança: “Desenha uma flor”. Dá-se-lhe papel e lápis. A criança vai sentar-se no outro canto da sala onde não há mais ninguém.
Passado algum tempo o papel está cheio de linhas. Umas numa direcção, outras noutras; umas mais carregadas, outras mais leves; umas mais fáceis, outras mais custosas. A criança quis tanta força em certas linhas que o papel quase que não resistiu.
Outras eram tão delicadas que apenas ao peso do lápis era demais.
Depois a criança vem mostrar essas linhas às pessoas: Uma flor (...).

Almada Negreiros, in “A Invenção do Dia Claro

A escola, em Almada Negreiros, ressalta o aspecto psico-pedagógico de uma aula na qual a criança inicia o seu percurso pedagógico. Este tipo de tema é também abordado no Livro da Primeira Classe de 1941, (p.41) “Jogando às Escolas”; no Livro de Leitura da Segunda Classe, 6ª Edição, 1958 (p.20), “O Quadro da Escola”; no Manual de Língua Portuguesa, 5ª Classe, República Democrática de S: Tomé e Príncipe, (p.11), “A Escola na Colina”; no Manual de Língua Portuguesa, 6ª classe, (pp. 9 e 55).

A abordagem de temáticas relacionadas com a “escola” serve para realçar a sua importância, enquanto espaço do exercício da escolástica. Entenda-se ensino realizado de acordo com o seu formalismo, seu tradicionalismo e a sua logomaquia([7])/o que nos remete para uma filosofia formalista, abstracta, teológica, da Idade Média, cujo modelo, ainda que alterado, conforme o enquadramento sociocultural de cada país, é o que ainda permanece.

B) Tempos-livres

Os tempos livres abrangem todas as actividades não escolares e familiares às quais a criança se entrega, a fim de se divertir e descansar. O tempo livre se enraíza no jogo infantil prolongado pela mesma criança: o tempo livre é a forma diversificada e aculturada do jogo([8]). Como exemplo de “tempos-livres”, vejamos o extracto de um conto tradicional cabo-verdiano, por João Lopes Filho:

O molho-de-capode

À noite houve baile em casa de Nhô Pirico. Na sala ornamentada de papel de seda e iluminada por candeeiros de petróleo, as damas ocuparam cadeiras dispostas junto às paredes. Trazendo roupas de tons escuros e lenços à cabeça, as senhoras sentavam-se nos lugares discretos, enquanto as mocinhas, em cabelo, procuravam dar nas vistas com os seus vestidos novos de cores vivas.

Mané Pala, organizador do convívio, informou eufórico que não se tratava de um “baile nacional” (ao qual todos teriam acesso), mas sim de uma confraternização especial em que até seria servido, de madrugada, um molho-de-capode e deu seguidamente a lista de convidados, pois aí não havia cabimento para os olhantes dançarem.
João Lopes Filho, Estória. Estória... Contos Cabo-Verdianos

Tempos Livres (Loisirs/Spare Time), é o período de tempo de que as crianças necessitam para se abstraírem do mundo formal da escola e da família, normalmente designado por (brincadeiras). A partir do texto dado, poder-se-á promover a interdisciplinaridade.

[1] Serviço de Acção Social Escolar.
[2] Não foi possível a reprodução da rubrica do Autor da obra LEITURAS COLONIAIS, de 1933, por esta prática se revelar pouco lícita.
[3] Sociograma: Em sociologia descritiva, este termo designa a figura que tem por objecto representar o conjunto das relações individuais entre os diferentes membros dum grupo
O sociograma serve-se duma técnica que visa estabelecer o diagrama das relações inter-individuais que constituem a estrutura dum grupo (...).
[4] Saraiva, Albano Alberto de Mira (1933), Leituras coloniais, p.28.
[5] Leif, J., Vocabulário Técnico e Crítico da Pedagogia e das Ciências da Educação; Editorial Notícias, p.208
[6] Organização de Pioneiros de S. Tomé e Príncipe
[7] Leif, J., Vocabulário Técnico e Crítico da Pedagogia e das Ciências da Educação; Editorial Notícias, p.149.
[8] Idem, p.425.

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