sábado, 9 de fevereiro de 2008

A MEMÓRIA FANTASIADA



JERÓNIMO de SOUSA PONTES

Romance
(Extracto de inédito)



Uma Estória de Suposições
(No paraíso de homens crentes)


Uma viagem aos sítios,
Aos costumes, às pessoas,
Às gerações passadas,
presentes e futuras.



O quarto sono, o quarto sonho



(Para falar do m’bilá, prepare-se, leitor, para um episódio ocorrido em casa do Hyéros)

A Roça Praia das Conchas tinha duas sanzalas: uma ficava perto da casa dos empregados (negros e brancos que compunham o corpo administrativo) e a outra chamava-se Capitania.

Certa vez, Relof e Syul foram passear ao pé da Capitania. Era um pequeno atalho que ia desembocar numa povoação, algures no noroeste do terreiro. Situava-se lá no alto da colina, incompreensivelmente afastada de outros aglomerados, como se tratasse de um lugar somente para os doentes contagiosos.
No sopé da montanha, por onde passava o atalho, havia uma fruteira. Engraçado! O meu pai dizia que ele não comia a fruta-pão, por causa de excesso de carbo-hidratos, que a fruta-pão não tinha qualquer valor nutritivo, que só servia de alimentação aos porcos. Mas os angolares, que eram muito mais inteligentes do que o meu próprio pai, apostaram na fruta-pão, e fizeram dela batata-inglesa. Talvez por isso, quando o meu pai caíra no desemprego, a primeira árvore que ele mandara introduzir na sua quinta foi precisamente a da fruta-pão. Não só no-la mandou transportar e plantar uma, mas três (vida cabalística essa), ainda por cima, no tempo seco, de maneira que, sem a água das chuvas, a alternativa fôssemos nós, com a mangueira, regando as três portentosas fruteiras, de fio a pavio.

Foram estas três fruteiras que, nos tempos das vacas magras, nos mantiveram erectos e vivos. As árvores enchiam-se de frutas e transmitiam uma sensação de poder, de abundância e de segurança.

Meu pai descomplexou-se de vez. Nas horas livres, também porque estava no desemprego, ensinava-nos as artes de preparar, “limpar”, frutas-pães assadas. Para alguém que detestava comer fruta-pão, era, no mínimo, um pequeno milagre. Primeiro, introduzia as frutas numa labareda – uma fogueira de lenhas, íngreme. As frutas assadas saíam com as cascas totalmente carbonizadas. De seguida, por opção, ou retirava-lhes as cascas ou limpava-as com uma faca, até que toda a parte queimada desse lugar a uma nova casca, em tudo semelhante a de um pão, acabado de sair do forno. Contudo, o meu pai continuava a defender que era perda de tempo.

- Ó pai, o senhor acha ser perda de tempo preparar uma comida como deve ser?- Não acho. Tenho a certeza. Se eu não conhecesse outro método...

Meu pai arranjou um tambor vazio e encheu-o de água. Mas também podia ter sido um balde. Depois mergulhou umas duas ou três frutas na água. Quando as cascas das frutas já estavam bem amolecidas, retirou-as da água. E com uma faca bem afiada, pôs-se a raspá-las, até ficarem quase brancas. Entre uma fruta-pão e uma careca, não havia qualquer diferença.

A diferença punha-se somente ao nível do comestível e do incomestível. Podia-se comer uma fruta-pão, mas nunca a cabeça de uma pessoa, por mais que se parecesse com um pão.
Tudo isso por causa dos angolares. Graças aos angolares e ao seu saber preservar o que a terra dá, ainda a razão da nossa existência! Mas quem são os angolares? Donde vieram? Como vieram? – É, com certeza, um outro mistério. É através do saber milenar dos angolares que pude compreender a força dos mistérios. O meu pai compreendeu finalmente a força da tradição. Será que o meu velho vai acreditar mesmo na força dos mistérios?

Mas se o mistério existe, existe mesmo. Vou provar por que digo que o mistério existe. Uma vez, eu vivia com o meu pai, a minha mãe e os meus dois irmãos. Tanto o Relof como o Syul, eram ambos meus meios-irmãos. Syul era filho do meu pai com outra mulher. Relof pertencia à minha mãe, pois tinha outro pai.

Naquele dia, quando eram doze horas, o sino do escritório bateu doze badaladas. Deu-se o silêncio, um silêncio aterrador – hora dos mortos.
Meio-dia e meia noite era um espaço unicamente reservado aos finados (pelos vivos?!... ou simplesmente um espaço conquistado aos vivos pelos mortos?). Nessa hora, os trabalhadores ou descansam ou agrupam-se em baixo de uma árvore para almoçar - hora perigosa! Hora em que os defuntos intrometem no mundo dos vivos. O único barulho que se podia escutar, naquele momento, vinha precisamente dos fantasmas, marcando a sua presença no mundo dos vivos – (assim na terra como no céu). Daí que, os miúdos, como geralmente são os que nada temem, porque, na verdade, também nada devem, inadvertidamente, acabem por violar o espaço proibido – o espaço dos mortos. Ou fazem-no, porque se esquecem ou, por necessidade de se liberarem; ou, por não terem assimilado correctamente os inúmeros teoremas enunciados pelos mais velhos, vão brincando com as coisas sérias da vida! Acham que, só por serem crianças, tudo quanto sabem, não careça contestação. Os seus saberes, interpretados como teoremas transformados, de certo modo, em verdade acabada, podem alterar o mundo dos adultos e conduzir a caos.

O verdadeiro axioma, no mundo infantil, na interpretação adulta, não passa de um simples exercício teorético. Daí o princípio e não o fim do caos.

O caos é uma evidência que se estabelece sempre que há a intromissão dos vivos no mundo dos mortos. Mas a inocência consciente é uma realidade que, quando introduzida, por irracionalidade ou por simples competição, poderá remeter para o sucesso ou para o insucesso, tomando como ponto de partida a maré da sorte ou do azar.

Se tivermos azar, saímos magoados. Caso contrário, ganhamos. E o melhor seria termos a consciência dos nossos actos, para não entrarmos desnecessariamente nos jogos de azar. Às vezes, as crianças ignoram os conselhos dos mais velhos porque, desse modo, isentos de qualquer responsabilização, acham que vencem. Outras vezes, saem derrotadas. Mas quando a derrota é muito pesada, sobra, infelizmente, para os adultos.

Naquela hora, meio-dia, os meninos sabem que devem parar as suas brincadeiras. Devem dirigir-se a casa, para almoçar. Sabem que é hora dos mortos e podem sofrer as consequências, se pisarem uma sombra ou se forem atingidos por "ventu bluku".

- Samum, ó Samum, venha depressa.- Que aconteceu para me estares a chamar com tanto alarido? Está alguém a morrer? Que alarmismo é esse? - Inquiriu a minha mãe.

- Olha, Samum, isso não é brincadeira, não. Os menino estão a morrer.
- Ó Domingos, tu e o Lázaro, transportem os meninos lá para dentro de casa. – Ordenou a minha mãe.
- Tu, Zeferino, mexe-te. Vai a correr ao hospital chamar o Sr. Enfermeiro (pai dos miúdos, ou pelo menos um deles?).

Quando o meu pai chegou a casa, como que possuído pelo defunto que possuíra os dois garotos, acusou a minha mãe de ter sido ela a orquestrar toda essa situação. Que tivesse sido ela, presumivelmente, a envenenar o seu filho, o outro meu irmão, filho dele com uma outra mulher. E quanto ao outro, nem uma palavra!

Naquele tempo, era quase impossível ter um meio de transporte próprio, por isso eram os patrões a investirem em ambulâncias. Muitas vezes, eram os tractores a substituirem as camionetas de caixa-aberta ou eram os próprios serviçais que se faziam de ambulâncias. Contudo havia uma roça que se punha ao nível do próprio Estado – a Roça Rio do Ouro, propriedade pertencente ao Conde de Valle Flor. Era uma espécie de micro-Estado, dentro do grande universo colonial santomense. Naquela Roça, tanto as superstruturas como as infra-estruturas eram adequadas, funcionais.

Cansados, e receando o pior, os dois serviçais, finalmente, chegaram à vila de Guadalupe – um deles, ambulância da minha mãe; outro, ambulância do meu pai.

A mãe do Syul vivia na capital da Colónia. Após a notícia sobre a situação de saúde do filho, recebera o apoio financeiro do meu pai, o mesmo que não acreditava na força dos mistérios. A situação era de tal modo preocupante, que ele acabara por ceder, mostrando-se, entretanto, duvidoso por causa das suas convicções religiosas. É que o caso não era para menos. Negar um gesto ou dar um passo em falso, ficava ele responsabilizado, como aquele que contribuiu para a morte do próprio filho. Então, mais que simples desejo, preferiria, mil vezes, curar o filho do que enterrá-lo.

Relof, sem qualquer apoio do meu pai, teve que contar, exclusivamente, com a criatividade da minha mãe.

Toda a gente da vila quis solidarizar-se de alguma maneira. Sam Dankla e as suas amigas arranjaram um bom curandeiro (kulandelu) e puderam assim salvar o Syul. Foi uma intervenção forte, que nem aos polícias que acorreram ao local, para prenderem os gentios, poupou. Todos tomaram o santo[1] e dançaram o djambi.
Os polícias, quando acordaram da situação extasiante em que se encontravam, nem souberam para onde foram parar as armas.

Minha mãe, ao longo dos anos, vinha amealhando a sua parca economia, já a contar com tragédias desta natureza. Com o dinheiro amealhado, pagou o Zeferino pelo transporte do filho, de Praia das Conchas à vila de Guadalupe.

- Obrigado, obrigado... Deus paga Samum. Filho de Samum vai ficá bom. (Deus lhe pague, senhora, o seu filho haverá de ficar bom).

Como a minha mãe tinha amizades na vila, e sendo ela também de lá, pôde facilmente arranjar um excelente curandeiro – pois tratava-se de doença espiritual. As doenças do espírito não se curam nos hospitais. Quem não sabe isso?

Dino de Sousa, assim se chamava o curandeiro. Era um temível curandeiro, homem de poucas palavras, fechado nas suas conchas. Media aproximadamente 1,90 m de altura. Pelo seu andar, deixava-se antever que tinha defeito numa perna. Mas o certo é essas calças esconderem no seu interior uma grande chaga. Ia assim, cambaleando, para o seu paço.

O paço espiritual do Dino de Sousa não passava de uma barraquita, uma espécie de Quixpá[2], construída somente com materiais locais: “vá-plegá”[3], para as paredes; “pavu” (andalas trançadas) para a cobertura; “pó-blutu” (madeira não trabalhada), no esqueleto da casa. O soalho era o próprio chão de terra-batida.

No interior da barraca estavam depositados vários amuletos africanos, bem como imagens de santos da igreja católica romana. Ao centro, defronte à porta da entrada, erguia-se um grande altar sobre o qual se podia vislumbrar uma majestosa imagem do Nosso Senhor, cruelmente pregado numa cruz.
Os olhares do Mestre eram demasiado severos, fixos nos que o solicitavam, no seu eterno silêncio. A sua expressão, logo à entrada, insinuava expurgar, diante de si, todas as almas impúdicas que lá iam incomodá-lo, os descrentes.

Dino, em jeito de Sumo Respeito, perante a imagem crucificada de Jesus Cristo, ajoelhou-se e orou durante vários minutos. Traçou, com rosto carrancudo, o diagnóstico do meu irmão Relof. Feito o diagnóstico, começa-se a cerimónia:

Zugu-Zugu ka ma mira Ka ma mira wha xani

Intraduzível! Linguagem mística dos ancestrais escravos, só ao alcance dos que lidavam com seres superiores. Os olhos do Dino de Sousa, de um momento para o outro, abriram-se em tamanho da lua cheia, como que saltando da órbita. – Tomou o santo[4].

Entrado em êxtase, os dentes do Dino semicerram-se e puseram-se a ranger, provocando um som estridente. Dino procurava abrir a boca para comunicar com os seus ajudantes, mas as forças do mal, aí instaladas, impossibilitavam-no de pronunciar palavras, perceptíveis aos ouvidos dos comuns mortais. O que lhe saía da boca não passava de soltos monólogos, somente decifráveis por Zinha, a única que estava dotada de poderes sobrenaturais desde a nascença.

- Quem não conhecia a Zinha Sam Kinha?

Zinha Sam Kinha ascendera a forra, tal como todos os outros da etnia angolar que, num certo dia, abandonaram a vida do mar e foram fixar-se nas vilas, cidades e luchans (aldeias). Foi por isso que muitos angolares já não vivem no Vadji Ngolá (várzea dos angolares).

Os angolares, como não se sentiam totalmente integrados nas coisas da vila forra, formaram um pequeno grupo na orla do Vadji Ngolá, perto da sede de kanhera (canhoneira), para onde foram viver.

Kanhera era um “Bailé Sokopé” (agrupamento cultural e recreativo da vila de Guadalupe). Todos os membros do socopé (dança praticada só com os pés), ajuntavam-se num amplo quintal onde realizavam os ensaios. Uns tocavam o tabaque, outros o kanzá (reco-reco), apito, wémbé (tambor grande, de som muito agudo), chocalho, ferro, etc.

Em torno da sede Kanhera, ladeavam-na as casas dos actuais residentes, formando uma coesa vizinhança. Não se sabe, ao certo, a origem do grupo kanhera. Sabe-se, no entanto, que se deve, provavelmente, a mais uma criação do regime do Estado Novo.

Nos dias festivos, o grupo actuava trajado a rigor. Todos uniformizados, à maneira de marinheiros, entoavam as mais variadas canções, ao som repicado dos tambores, das flautas, etc. Conta-se que foi numa dessas festas, que Sum Malé Semwã e Sum Tshindu Dentxi Bandêndê, ilustres representantes do regime, deferiram um duríssimo golpe sobre o grupo congénere de kanhera, vindo expressamente da Praia de Mouro-Peixe, às ordens do Sr. Governador: OS VIN MATCHA PINA TCHILADÔ BÉBÉ FALA[5] para tomar parte nessas actividades.

Quando a festa já ia bastante animada, bruscamente, os tocadores de OS VIN MATCHA PINA TCHILADÔ BÉBÉ FALA resolveram acabar com a folia. O povo, não gostando da atitude, protestou e gritou palavrões. Mas os tocadores acharam que tinham razão. Queixaram-se de ter havido irregularidades na atribuição dos apoios:

- Ó Mé Búnhé. Afinal, vocês receberam o dinheiro do governador e dizem que já não tocam? Cambadas de malandros!

- Nem pensar – Responde o Xídé – Vão perguntar Sum Sêmwã ku Sum Dentxi Bandêndê (perguntem lá aos senhores Sêmwã e Dentuça). Eles receberam o dinheiro, pipas de vinho e comida do Sô (Senhor) governador pa (para) nós. Mas a gente tocou a noite inteira sem comer nem beber. Nem um copo-d’água, nem um copo de vinho; nem um tostão, nem um prato de comida. Nada! A escravatura já acabou.

- Quem quer dançar de graça, vai lá dançar com Sum Sêmwãn e Sum Dentxi Bandêndê (quem quiser dançar de graça que vá dançar com os senhores Sêmwãn e Dentuça). – Concluiu Ma Maguita.

- Toda a gente sabe que eles pegaram no vinho e meteram nas suas lojas. A gente tocou com fome e com sede, até de madrugada. Nem uma pinga de vinho para alegrarmos o espírito, nada! – Berrou a Liská .

- Eles hão-de ficar aqui, desgraçados! Não vão longe! Havemos de os ver pobres e miseráveis a sofrer. Nós tocámos, dançámos, ainda por cima, descalços, nesse chão frio sobre o muro. Paciência! Diabo que os leve para o inferno – praguejou Sum Kinta, o chefe do grupo.

Enquanto isso, na tenda do Dino de Sousa, a cura do meu irmão continuava. Às ordens do curandeiro, os seus ajudantes estenderam o Relof sobre uma esteira, de peito para cima. Dino de Sousa mediu-lhe o pulso e, com a sabedoria de um médico, exclamou:

- Se demorassem só mais cinco minutos, o garoto não escapava. Eu nem pegava nele.

Muito calmamente, se é que alguma vez precisou de pressa para o que quer que fosse, acendeu as velas, espalhou o vinho e queimou o incenso juntamente com o alecrim. Invadiu o ar um cheiro purificador. A efusão entrara em acção, sacralizando o espaço para a eficiência da cura.

Dino de Sousa multiplicou-se em expedientes. As misturas e a azáfama foram-se sucedendo, ao ponto de a sala ficar totalmente enevoada. Não se conseguia ver nada, à distância de 1 metro. - Danou-se o mestre – então, com uma vassoura de cabo curto, Dino de Sousa pôs-se a espantar o espírito maléfico que se tinha apoderado da alma do meu irmão. Era, sem dúvida, uma tarefa, em si, difícil e complicada, porque implicava lutar contra os seres superiores, defuntos cujas almas zanzavam, sem paradeiro, tendo como moradia o m’bilá.


As horas pareciam intermináveis, o que tornava cada vez mais angustiante a espera agoirenta da minha mãe. Transportar o menino para o hospital, nem penar. Aplicando-lhe injecções, nesse estado, era morte certa. Doente de mato não pode ir ao hospital – acreditava minha mãe piamente.

- Dá licença, comadre. – Pede Zinha em voz respeitadora e familiar. Toma um pouco de canja. Come para a comadre ter força. Confia em Deus. Deus é grande. Ninguém morre atrás do dia. Cada um tem o seu dia. Coragem minha comadre.

Olhando para a comadre, como que lhe adivinhasse os pensamentos, continuou Zinha Sam Kinha:

- Olha que o filho do Sum Fliku Plétu veio p’aqui assim mesmo. Mas Dino pegou nele, um instante só. Tá lá rapaz lá a corrê, a saltá que nem cabra (Mas o Dino pegou-o, num instante, já estava bom. Lá está o rapaz a correr e a saltar que nem uma cabra).

A minha mãe sorriu desconfiada, o que suscitou, na altura, um reparo muito sério da Zinha:

- Xê, comadre não acredita? Ãh, N kêcê, kwa ten sa mwala funshonário (ah, esqueci-me, afinal a senhora é mulher de um funcionário...). Por isso a comadre pensa que a gente está a brincar. Nós é burra sim, mas nessas coisa de mato, ninguém engana nós. Concluiu Zinha (ah, tinha-me esquecido de que a senhora é mulher de um funcionário. Por isso a comadre pensa que estamos a brincar. Nós somos burras sim, mas nessas coisas do mato "coisas espirituais"ninguém nos engana).

Dino de Sousa afastava os maus espíritos com determinação. Enquanto isso, Zinha cuidava do doente, limpando-lhe o suor que descia da testa em torrente, com um pedaço de pano semi-molhado.
Na ausência de uma ventoinha, Sam Kinha, mãe da Zinha, com um leque de úlwa,[6] abanava o efémero, pacientemente. Mesmo se houvesse ventoinha, não havia energia, por isso tiveram que improvisar. Quem não improvisa alguma coisa nesta vida de improvisos?!

Depois de quatro horas de um Djambí[7] bem tocado, o lugar transformou-se numa autêntica fumarada. – Parecia-se com a panela de um comboio a vapor.

Lentamente, os olhos do meu irmão começaram a abrir-se. Aos poucos, começou por vislumbrar, aqui e ali, silhuetas imperceptíveis de pessoas, coisas e objectos, que se encontravam no interior da barraca. Mas quando finalmente os seus olhos se cruzaram com os ríspidos e intransigentes olhares do Senhor crucificado, deu um grande grito, pulou do leito improvisado, chocou abruptamente com uma das paredes da barraca, derrubando-a contra a multidão que aguardava, da parte de fora, e raspou-se dali que nem uma flecha. Até parecia que tinha asas nos pés.

Os curiosos que aguardavam, impacientemente, pelo sucesso da cura, perante o alvoroço que provinha do interior da barraca, desataram a correr em pânico.

- Kidalê-ô, kidalê-ô, povo-ê, à bi Zuda non fã...! Djina ku Dino Ka fé mindjã naí, n nachi bê moda kwa sé fá...plumê vê! (aqui-del-rei, aqui-del-rei, ó povo, ajudai-nos. Porque desde que o Dino faz cá o tratamento, não me lembro de ter presenciado uma coisa destas). – Comentou Sam Zuliana, pasmada!

- Está curado, está curado – bradou Sam Kinha, mãe da Zinha.

O cheiro da "muta" ficou gravado no meu nariz, durante pelo menos três semanas. Trata-se dum cheiro nauseabundo duma poção fabricada, especialmente para afugentar tanto os "espíritos maus" como as bruxas. Pega-se na "zaua vé"[8], "óvu pódlé"[9] e mais uma série de compostos, mistura-se tudo numa lata. Mal aconteça algum caso ligado ao sobrenatural, é automaticamente aplicada a famosa "muta". Não há defunto que a resista!

Os alvos preferidos, no banho da "muta", são os "piucus". "Piucus" ou (piá ukus) ou "vidjukus" (vidja ukus), eram homens, muitos deles "bolilos" (impotentes) que se agachavam por perto das casas de mulheres que, na ausência dos maridos, os traíam com amantes - a fim de se inteirarem da sua vida privada, para a provável divulgação na praça pública. Quando esses infractores eram apanhados em flagrante, as mulheres, escondidas atrás das janelas de suas casas, aplicavam-lhes o perfumado banho (de muta). Era assim que se curava a coscuvilhice em S. Tomé – um método eficaz e tanto.

Dino de Sousa, quando "montado", ganhava energia de uma pantera. A lentidão da sua chaga transformava-se em energia, de uma velocidade sem par. Pegou num pequeno crucifixo e saiu correndo atrás do Relof.

Relof, ainda assustado e meio atordoado, continuava a correr, sem limite nem intenção de parar. Ao dobrar a esquina, para entrar no quintal de Sam Ma Néné, tropeçou na raiz de uma cajamangueira e caiu. Automaticamente é alcançado por Dino de Sousa. Mal conseguia abrir os olhos.

Relof ainda não estava totalmente restabelecido do susto que apanhara na tenda do curandeiro. Dino de Sousa, então, não perdendo tempo, sacou do bolso um pequeno crucifixo preto e colocou-o no peito, semi-aberto, do meu irmão. Com a mão esquerda, retirou do bolso um frasco com uma efusão líquida. Molhou o indicador direito com o líquido retirado da garrafita, fez uma cruz no peito do paciente, tanto no lado direito como no esquerdo; fê-lo uma cruz na testa, outra atrás da cabeça, outra no centro da cabeça, outra um pouco abaixo do umbigo; uma em cada joelho, outra atrás dos joelhos; uma atrás de cada orelha e finalmente uma em cada planta dos pés.

Quando o Dino finalizou o trabalho, Relof estremeceu como que se estivesse a ser atacado por umas fortes febres. Aí aconteceu o insólito: saiu do seu corpo uma grande sombra. A sombra afastou-se dele e do curandeiro, uns 10 metros de distância. Aos poucos, a sombra foi crescendo, crescendo, até ganhar forma humana. A multidão que acorreu atrás do acontecimento, parou incrédula a observar. Dino, perante o perigo, gritou:

- Fujam daqui e levem o moço já convosco.

A sombra recuperou totalmente a forma humana e continuou a crescer, crescer, crescer, ainda mais, tombando para frente e para trás. Entretanto, alguém se lembrou de espalhar a água benta e gritar credo.
A "alima bluku", pela interferência da oração, [10]cresceu cerca de cinquenta metros ou mais de altura. Dino de Sousa foi-lhe controlando os movimentos, porque se este caísse sobre ele, era morte certa.
Então, quando a "alima bluku" pensara em atirar-se contra o curandeiro, este passou-lhe por entre as pernas abertas. O defunto desequilibrou-se, várias vezes, e partiu-se ao meio. Por onde caiu, aconteceu uma onda de devastação – nada ficou de pé. No dia seguinte, o rasto da destruição foi parar ao "m’bilá" que Relof e Syul tinham pisado.

Depois do lamentável incidente que levou o meu irmão ao paço do Dino de Sousa, a nossa vida nunca mais foi a mesma. Entretanto, Relof melhorara a olhos vistos, o que só veio a galvanizar o prestígio do Dino de Sousa.

Um triste incidente que devia ter conhecido outros contornos, veio alterar substancialmente tudo.
Meu pai, penso que não soube esconder a vergonha, nem admitir a culpa, pela forma como lidara com o assunto. Acho que foi por isso que ele alugara uma casa de alvenaria na vila de Guadalupe, no Vadji Lama-lama, para onde fomos morar, quando deixámos a roça.

Lembro-me desse tempo. Chovia, chovia e chovia. Mas nenhuma chuva de S. Tomé chegaria para pacificar tantas almas penadas algures sentadas sobre o seu "m’bilá", nas antigas roças de cacau – um perigo para quem não acredita, num tempo em que já não há curandeiros tipo Dino de Sousa.


[1] Entraram em êxtase

[2] Barraca feita de folhas de palmeira

[3] Ramos de palmeiras que se colocam uns sobre outros. Depois de rachados, perfurados por estacas pontiagudas, tendo por base troncos de bananeiras, na posição horizontal, até formar uma parede, aproximadamente entre 1,8m altura e 2m ou mais de largura, muito utilizada na construção de habitações tradicionais ou cercados

[4] Entrou em transe/ êxtase

[5] Vinho de elevada percentagem de álcool, que, bebendo-o, por pouco que seja, fica-se logo bêbado. Fig. Troca-tintas, “toma bé, toma bi”; intriguista

[6] Folhas de uma árvore de grande porte, geralmente utilizada como leque

[7] Música e dança exclusivamente praticadas em rituais secretos (magia negra)

[8] Chichi de muitas semanas

[9] Ovos de galinha estragados

[10] Alma penada, com poderes de grandes maldições

sábado, 2 de fevereiro de 2008

A APLICAÇÃO DOS MANUAIS ESCOLARES

Extracto de Dissertação de Mestrado:
História da Educação em S. Tomé e Príncipe
Por: Jerónimo Xavier de Sousa Pontes

A aplicação dos materiais escolares, segundo a avaliação do relatório da Gulbenkian/MEC, foi passando de medíocre para suficiente. No entanto, por o sistema ser uma reprodução do modelo social no qual um pai não consegue garantir o sustento adequado à família, que fará custear os estudos dos filhos, então, os Manuais de Língua Portuguesa produzidos em cooperação entre Portugal/S. Tomé e Príncipe, através da Fundação Calouste Gulbenkian, são depositados na escola, a fim de serem gratuitamente cedidos aos alunos carenciados, a título de empréstimo. Ao longo do ano é assim que ainda funciona. O aluno não é dono do material, mas sim o Estado. Logo o valor afectivo imposto nesse tipo de relação não seria o mesmo, se o livro fosse do próprio aluno. É uma hipótese já avançada em Portugal recentemente, mas que não vingou. Pretendia-se com isto resolver o problema de financiamento de manuais aos alunos mais carenciados, afectos a SASE ([1]).

Um dos materiais didácticos de maior relevância no Ensino Secundário depois da Independência, foi o caderno diário. Funcionou durante muito tempo como substituto dos manuais escolares para todas as disciplinas. Normalmente, os professores, após a escrita do sumário, a única metodologia que dominavam era ditar os apontamentos, que os alunos muitas vezes escreviam da maneira como entendiam. Então os erros sucediam-se, principalmente da parte dos que faltavam. Era sistemático cometerem-se muitos erros ainda, quando copiavam dos colegas que provavelmente escutaram e escreveram mal, ou porque o próprio professor ditou, pronunciando incorrectamente determinadas formas.

O material didáctico produzido pela Gulbenkian, no fim de algum tempo, quer os cadernos de apoio dos professores quer os dos alunos, desapareceram na totalidade. Os docentes que ainda conservavam algum exemplar, não os facultavam aos colegas que iriam entrar pela primeira vez no sistema.
Os actuais manuais de Língua Portuguesa do Ensino Secundário não passam de uma colectânea de textos de vários autores, sem qualquer caderno de apoio do professor ou do aluno.
Durante todo o 1º período e quase metade do 2º, não se utilizam quaisquer textos do manual. Esta situação verifica-se porque os conteúdos programáticos da unidade temática foram alterados, o que veio a provocar o baixo nível de aproveitamento registado em torno da competência e performance linguística dos alunos. Actualmente, praticamente não existe qualquer manual escolar em nenhuma das disciplinas do curriculum em S. Tomé e Príncipe. Dos poucos manuais de Língua Portuguesa existentes, têm permitido que alunos andem de salas em salas pedindo livros emprestados.

O ensino centrado no caderno diário que contribuiu irremediavelmente para a degradação do uso da Língua Portuguesa, durante os primeiros anos da independência, regressou em força.
Contrariamente ao que se poderia supor, o Ministério da Educação de S. Tomé e Príncipe recebeu da UNESCO uma importante verba para fins do cumprimento dos objectivos da EPT 2000-2015, mas a situação mantém-se. Entretanto o novo Embaixador de Portugal, para o Ano Lectivo de 2004/2005, através do Sector cultural da representação Portuguesa, mandou reeditar os antigos manuais, esperando colmatar as lacunas ora existentes.

Sobre a evolução da história dos Manuais Escolares em S. Tomé, atentemos na análise do manual LEITURAS COLONIAIS, de Albano Alberto de Mira Saraiva e Carlos Rosa Machado de Faria, a fim de compreendermos como se organiza, estrutural e ideologicamente.

Este livro de leitura (manual) inicia-se com uma advertência: são falsos todos os exemplares que não tenham esta rubrica Albano A. de Mira Saraiva[2], seguida de uma dedicatória: “Redacção do Boletim À Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa Of. Albano Alberto de Mira Saraiva, Lxª 12 – XII – 33”. Precede-se-lhe uma chamada de atenção, em jeito de “Prefácio para a gente grande” (p. 4).

A elaboração deste manual, por particulares, é uma resposta ao decreto de 1929, publicado pelo Ministério da Instrução, determinando que fosse intensificada a sua aplicação em todas as escolas do Ensino Colonial, mas terá ficado letra morta, por falta de apoio do Estado. O manual Leituras Coloniais não recebeu qualquer patrocínio da parte do Estado Português.

Este pequeno apontamento realça a preocupação dos autores da obra, face à contrafacção; o papel do Estado enquanto financiador do sistema educativo; e o reconhecimento das intervenções do sector privado, enquanto patrocinador das actividades lectivas.

No respeitante à estrutura do Manual, infira-se:
Quanto à forma, existe um Prefácio com breves notas do autor. Depois segue-se um mapa. O papel do Mapa – um Planisfério – é bastante elucidativo. Era para mostrar, não só o percurso do Joaquim em viagem, como também para localizar as possessões portuguesas nos mais variados cantos do mundo. De seguida, vem a Introdução, onde se procedeu a um sumário crítico, explicitando o objectivo do livro e a importância do seu incremento.

Os Textos foram criteriosamente seleccionados e adaptados ao contexto linguístico, sociocultural, didáctico e pedagógico dos alunos, nas categorias de - informativos, narrativos, didácticos, poéticos - (especificamente sobre cada país visitado, e “Ainda duas palavras sobre os autores”). O livro termina com um exaustivo levantamento vocabular, o índice e o posfácio.

Quanto ao conteúdo, o livro fala-nos da Leira do Joaquim; da localização geográfica dos países do ultramar; dos feitos heróicos portugueses; da fauna; da flora, e das riquezas do solo e do subsolo).
Trata-se dum livro de leitura dirigido às crianças, mas que, curiosamente, apresenta um prefácio destinado aos adultos, referindo que “Não é este Prefácio destinado aos pequenos leitores dêste livro, que a êsses só os interessará o Joaquim, o protagonista do livro (...) ”. Diz que o prefácio “é para os pais dos pequenos e ainda para os professores que, com o auxílio doutros, serão na escola primária os iniciadores duma grande obra”.

O livro tinha como objectivo dotar os alunos, pais e professores de um instrumento didáctico e pedagógico, base de orientação para um estudo organizado, estruturado, sistematizado e coerente. E, para que os alunos não se sentissem desapoiados, segundo as pretensões dos autores, como que recorrendo ao jogo ideológico, dedicaram o prefácio da obra aos seus mais directos destinatários: aos pais e aos professores. Isto porque, enquanto os pais representam a imagem tradicional da família, os professores servem de veículo ideológico do poder.

Os autores do manual reconheceram entretanto que, não obstante tivessem produzido um instrumento de inegável valor, a obra pareceu-lhes incompleta, carecendo ser completada com recurso às obras doutros escritores – o que realça efectivamente o papel de um livro de leitura e nunca algo hermeticamente cingido sobre si mesmo.

Os meninos são enquadrados nesta história/estória como o conjunto das relações entre diferentes membros dum grupo sociográmico ([3]); pois “Aos meninos, cabe a História do Joaquim” – há um aspecto Ideológico subjacente a esta expressão: os meninos não podem entrar prematuramente no mundo dos adultos. Quando isto acontece, revelam-se frustrados; pois chegada a idade adulta, compreenderão que não terão vivido a sua infância. Não deixa de se constituir numa chamada de atenção para os adultos: não devem utilizar os manuais para veicularem as suas aspirações, sejam elas de que naturezas forem. Por isso, aos “meninos, cabe a história do Joaquim”.

O protagonista da história é aquele cuja missão é narrar às outras crianças as peripécias de uma viagem espectacular pelo imenso mundo português, ao encontro de outras terras, outros povos, outros hábitos e costumes, a fauna, a flora, a orografia.

Ao nível sociocultural, tratar-se-á de uma viagem ao encontro de culturas, que poderá ser vista, nesta análise, na perspectiva em que ela aconteceu. Com o efeito, o propósito da excursão visava “Ensinar as crianças portuguesas a conhecerem e amarem êsses múltiplos espaços de Portugal a que chamamos colónia”, tendo em atenção:

· o aspecto ideológico – “os seus autores dão, pela sua competência e pelo seu patriotismo, sólidas garantias de que o livro corresponde aos seus elevados propósitos”.

· a capacidade pedagógica dos seus autores, aliada à experiência obtida In loco - “o inspector escolar Mira Saraiva trouxe para o livro a sua competência pedagógica, o coronel Roma Machado (...) o seu saber e experiência sobre as colónias portuguesas”.

· a política educativa e o financiamento do Estado - o fraco poder interventivo do Estado na incrementação da política educativa “são devidos particular elogios aos autores dêste livro pois meteram hombros à sua publicação sem nenhum apoio oficial, com a única ambição de bem servir”.

· o ideal expansionista - dar aos portugueses de Aquém e Além Mar os ensinamentos de mútua compreensão que colidem, não só no domínio sentimental, mas também no das realidades, o espírito de uma nacionalidade cujas terras se alargam por quatro continentes.

· o exotismo – toda a obra se centra numa viagem tipo Piloto Anónimo, Marco Polo, ou Fernão Mendes Pinto – há um europeu que viaja para um espaço extra-europeu, e delicia os que nunca lá estiveram com estórias fantásticas. Mas a viagem em si estava carregada de uma elevada simbologia, pois tratava-se do privilégio que se assistia àqueles que se esforçavam: o menino europeu bem comportado que ascende na vida por obediência, e vai visitar uma grande parte da herança do povo português espalhada pelo mundo.

A ideologia é veiculada através de textos, nos quais em tudo o homem branco, por mais que esteja em apuros, vence (- veja-se p. ex. o ataque dos negros armados com azagaias contra um branco (p.124)).

Os casos mais paradigmáticos neste manual são, por exemplo, a história do “Feitor Mau” (pp. 44-45); “Amigos de Infância” (p. 79), e “Terras Africanas” (pp. 104 a 108). São estórias sobre usos e costumes dos indígenas. Nelas, evidencia-se a tentativa de conversão das crianças negras ao catolicismo, nas quais se realça, implicitamente, a temática da antropofagia, e das crenças populares. A temática do “bom selvagem” é evidenciada através da caracterização física e psicológica do indígena. A deformação dos indígenas por meio de caricaturas é uma evidência em todo o manual.

Contrariamente aos outros espaços, devidamente observados na obra, chega-se a desconfiar das intenções dos autores textuais sobre Cabo-Verde e S. Tomé e Príncipe. Há subtileza na descrição do espaço, na selecção das ilustrações e na forma como os autores da obra lidaram com a temática do crioulo de Cabo-Verde. Não nos admiremos pois, que essas ilhas tenham sido criadas para funcionar à imagem e semelhança de Portugal, só que a História encarregou-se de lhes mudar o rumo. A africanização acentuou-se muito mais em S. Tomé e Príncipe do que em Cabo-verde.

Na obra Leituras Coloniais, “o rural é o espaço de referência dominante, objecto de descrições nas quais predominam retratos de uma natureza pujante e bela” – a flora santomense, as tabancas da Guiné-Bissau, o sertão angolano e moçambicano. Intercalam-se outras estórias em jeito de excertos que se complementam com cenas do quotidiano. Mostram sentimentos de desejo, cenas furtivas de incursões de caça, pesca, etc., assim como as diferentes formas de manifestações culturais. No retrato, o quotidiano é realçado através das produções agrícolas, das habitações tradicionais, das aulas ao ar livre. Tudo isto em conjunto apresenta uma outra faceta da realidade. Ainda que idilicamente, é evidenciada uma grande falta de investimentos por parte de quem tutela: os homens, as mulheres, as crianças, as construções sem um mínimo de condições, foram habilidosamente focados.

Ao longo do manual, houve a preocupação de se apresentar, em jeito de síntese, narrativas de eventos históricos, assim como actos de heroísmo praticados por dever patriótico: descrições de lugares, textos de autores com ligação afectiva a cada país, o que anunciava uma nova postura no campo ideológico.

Ao nível temático predomina a mitologia da Expansão Marítima com a correspondente alegoria visionária: a caravela, o padrão, o soldado, o exotismo do espaço conquistado, o forte, e a figura sacralizada do evangelizador.

Na dimensão épica, a espiritualidade telúrica é expressa na defesa e conservação da Pátria. Muitas vezes, nessas manifestações em que se realçam a grandiosidade de um espírito nacional, pode ganhar dimensões satíricas, como acontece neste poema inserto na obra:

Que importa ao Portugal, que Camões
Cantou, o desvairado gesto dumas dúzias
De maus portugueses? Meus filhos, nes-
tes momentos de desgraça e desânimo
que os Lusíadas nos sirvam de Bíblia:
Rezai por eles e desta oração a vossa
Alma sairá desanuviada, cheia de orgu-
Lho e bem crente na eternidade do nome
De Portugal.

Que eu canto o peito ilustre Lusitano
A quem Neptuno e Marte obedeceram:
Cesse tudo o que a antiga musa canta
Que outro poder mais alto se levanta (
[4]).

O aluno Joaquim incorpora em si as formas de uma contemplação mítica, de um envolvente impulso regressivo, de uma devoção telúrica, enfim de uma procura, no fundo, doutrinal, das raízes ocultas do carácter nacional, sobretudo uma elevação quase corpórea perante os desafios da colonização.

Globalmente, em As Leituras Coloniais, verifica-se que em quase toda a sua extensão se faz conduzir por um leitmotiv “indígena”; ou a um objecto, “a terra” ou a um sentimento, “a religião” – ideologia colonialista, incarnada no Joaquim da Leira.

O conceito indígena assume uma dimensão polissémica, isto é, ambígua, a partir de uma determinada altura. Anteriormente, poder-nos-ia remeter para uma situação de miséria, pobreza absoluta (indivíduos absolutamente pobres), mendigos, pessoas que viviam de extrema necessidade e de carência mental ou intelectual. Por outro lado, e sintomaticamente, significava autóctone de um dado país, sem qualquer semântica pejorativa – será nesta ou naquela acepção que o estado de indigenato é realçado, implícita ou explicitamente, em toda a dimensão da obra. As culturas e os costumes indígenas são alvos de caricatura, cingindo-se a uma representação burlesca de pessoas ou acontecimentos para os ridicularizar, quer pelo seu aspecto quer pelos modos, se atentarmos nas ilustrações e nas estórias fantasiadas nela expressas – tudo para fins didácticos e pedagógicos.

A figura do professor, ao longo da obra, enquadra-se na perspectiva de um indivíduo sabedor, de grande mérito e respeitabilidade, chegando a desempenhar uma função extremamente importante na hierarquia familiar do aluno. O professor apresenta-se num plano superior ao do próprio pai. É a ele quem cabe as decisões mais importantes, como no caso do Joaquim da Leira, e só depois as comunica aos pais do aluno.

O exotismo é aqui referenciado na apresentação dos hábitos e costumes de países de climas diferentes do da personagem. Assim, o que é exótico passa a ser conotado com aquilo que é de fora, do estrangeiro ou que tivesse que ver com costumes estrangeiros, esquisito - extravagante, aos olhos do visitante (p.124). Mas a linguagem utilizada não indicia qualquer intenção etnocêntrica. Só o percebemos a partir de uma leitura em perspectiva.

T oda a temática do manual é apresentada em termos do ruralismo (p.11). As personagens apresentam-se todas descalças – uma possível ou casual analogia com o menino negro (p.81) na sala de aula que contrasta com a da escola da (p.115).

Para além do manual em análise, ao longo do colonialismo, vários outros manuais terão sido adoptados pelo Ministério da Instrução na monarquia e pelo Ministério da Educação na República Portuguesa.

Em 1941, é adoptado o livro da 1ª classe como “livro único” nas escolas primárias portuguesas. Isto aconteceu durante largo período da Ditadura Nacional (1ª edição, da Livraria Sá da Costa).
Em 1944, a Livraria Popular de Francisco Franco, publica, sob autoria de Santos Lameirão e Frutuoso de Carvalho (professor do Ensino Técnico e Profissional), um livro de leitura de Língua Portuguesa, intitulado Aquém-e-Além-Mar, com um extenso subtítulo: “Esta é a ditosa pátria minha amada” - Selecta Portuguesa, 1ª Parte (1º e 2º ano), 6ª edição, para uso dos alunos das Escolas de Ensino Técnico Profissional.

Em 1958, o Ministério da Educação Nacional edita o Livro da 2ª classe (6ª Edição), da Educação Nacional, de Adolfo Machado.

Tanto o livro da 1ª como o da 2ª classe, ambos apresentavam uma organização estrutural bem delineada, mais adequada às idades das crianças. Nesses manuais, por acaso muito bem elaborados, para além da leitura dos textos que proporcionavam, havia atractivos outros que tinham que ver com as ilustrações. A ilustração surge-nos como uma componente visual de inegável relevância, possibilitando aos alunos a ligação entre o concreto e o abstracto – a ilustração, entenda-se, um processo que visa esclarecer, fazer compreender uma ideia, um conceito, um pensamento, um texto, por imagens (a imagem diz respeito ao ensino na sua qualidade de:

- reprodução duma percepção na ausência do objecto que a provocou
- visão interior, muitas vezes subjectiva, aparentada com a recordação, ou representação duma coisa, dum ser
- reprodução dum objecto por actos gráficos ou plásticos, pelas técnicas audiovisuais), exemplos, explicações ([5])

Sobre os manuais aplicados no colonialismo e no pós-colonialismo, atentemos agora nalguns extractos desses manuais, aplicados em S. Tomé e Príncipe, tendo em conta o enquadramento temático:

(No colonialismo)
a) religioso:

Foi Deus,
Meu amor!

- Mãezinha, quem fez as árvores?
Quem pintou o azul dos céus?
Quem fez as serras e os montes?
Quem fez os rios e as fontes?
- Meu amorzinho, foi Deus.

b) do quotidiano laboral:

A dona de casa

Emilita é muito esperta e desembaraçada, e gosta de ajudar a mãe.
- Minha mãe: Já sei varrer a cozinha, arrumar as cadeiras e limpar o pó.
Deixe-me pôr hoje a mesa para o jantar.
- Está bem, minha filha. Quando fores grande, hás-de ser boa dona de casa.

c) dos costumes:

Dizei a verdade

- A minha filha não se senta à mesa, porque ainda não lavou as mãos.
- Minha mãe, lavei-as mesmo agora.
A mãe pega nas mãos da Olga, examina-as e olha demoradamente para a filha.
Esta compreende os olhares da mãe e diz-lhe:
- Minha mãe! Desculpe. Eu vou já lavá-las...

d) de amor à Pátria:

Viva Portugal
é a nossa Terra.
é a mais linda de todas as Terras
do Mundo!.

Todos esses manuais normalmente dividiam-se em dois grandes blocos: um para o exercício ou prática da leitura e interpretação, outro reservado à aritmética. Tudo isto fazia parte da estratégia do livro único, introduzido durante o governo do Estado Novo. A parte reservada à aritmética da 1ª classe, relacionava-se com a composição e decomposição de números, conhecimento dos algarismos, a noção de zero, a numeração, a noção de dezena, a adição ou soma, com transporte, de dois dígitos; soma, sem transporte, de dois compostos; as subtracções sem empréstimo e com empréstimo; a multiplicação e a concretização da tabuada, a multiplicação, com transporte, de um composto por um dígito; a divisão de um dígito por outro; divisão, com transporte, de um composto por um dígito, e exercícios vários de aplicação sob formas de problemas.

Na segunda e na terceira classes, repetia-se a estrutura do manual da 1ª classe, mas com conteúdos mais adequados a estes níveis. Já na 4ª classe, havia uma melhor elaboração e controlo das actividades, pois tratava-se de classe terminal. Com a 4ª classe podia-se prosseguir os estudos no exterior, podia-se entrar para o funcionalismo público, podia-se obter a carta de condução, etc. Tempos houve que, com este grau de ensino ou mesmo com uma simples 3ª classe, se admitiram candidatos no curso de enfermagem. Na altura havia os tais exames do 1º e do 2º grau, dos quais muitos professores do ensino primário antigo não possuíam mais do que o 2º grau.

Com o andar dos tempos, os manuais escolares foram-se especializando e as sucessivas mudanças políticas obrigaram a alterações de atitude dos governantes de Lisboa. Porém, no que respeita à política ultramarina, os temas neles desenvolvidos, pouco ou nada se alterou, sobretudo quando o assunto fosse Religião, Pátria ou Família.

A questão da manutenção de temas como Deus, Pátria e Família nos manuais escolares era um recurso ideológico importante, a partir do qual o povo era regido à base da cega obediência. Por isso, e por se tratar de uma matéria deveras sensível do ponto de vista da reivindicação do homem negro, os movimentos negritudinistas tornaram-se mais exigentes. Quando as posições se extremaram, os sinais de cedência começaram fazer-se sentir. Mas as alterações só se verificaram ao nível estético, tendo-se esfumadas as caricaturas e aspectos que indiciassem o etnocentrismo.

Os temas relacionados com as possessões portuguesas em África são recuperados a partir de uma integração plena desses espaços, deixando de constituir refúgios para fins exclusivamente de lazer. De qualquer maneira, nesses espaços exóticos, o outro é também português, mas o seu estatuto de africano era manifestamente suficiente para suscitar atitudes como a que ilustra o excerto do manual da 4ª classe (pp. 51-52), durante o período do Estado Novo:

Dois Portugueses

No recreio, os meus alunos brincavam. Eu, perto, vigiava-os.
Na escola, havia dois pequenitos angolanos, mulatos, inteligentes e de que todos os seus condiscípulos eram amigos. Frequentavam a 4ª classe e o seu comportamento era exemplar.
O pai, abastado proprietário em Angola, havia sido já meu aluno. (...).
Em certo momento, ouvi por trás de mim conversa animada. Voltei-me e vi um deles a discutir com o seu companheiro de classe. Dizia este:

- És português de Angola...
- Mas sou português...- retorquiu o meu aluno de cor.
- Mas eu sou português de Portugal!
- Mas eu também sou português – insistia o pequeno angolano, mas já com um certo receio na voz.
- Mas nasceste em África eu é que sou bem português – replicou o companheiro, com uns certos ares de superioridade e orgulho.
- Eu também sou português – repetia, teimosamente, o outro, cada vez mais triste.
Aproximei-me. Pus cada uma das mãos sobre os ombros dos meus dois alunos, aproximei-os mais um do outro e disse-lhes:
- Manuel, tu, afinal, não tens razão nenhuma em quereres ser mais português do que o Luís. Nascer em Angola é nascer em Portugal. Não digas que o Luís é português de Angola e tu és português de Portugal.
- Mas ele nasceu em África. Eu é que sou bem português – ia a retorquir Manuel.
- Pois nasceu, e pode sentir-se tão orgulhoso
disso como tu de nasceres na cidade do Porto.

“D. E”

A partir dos meados dos anos 50 do século XX são introduzidas novas alterações na elaboração dos manuais escolares. As ilustrações, que a tudo remetiam para o cómico de linguagem e de situação, são substituídas por outras mais pomposas. A metodologia adoptada para a elaboração dos manuais escolares sofreu alterações significativas, mantendo-se porém canonizados aspectos de relevância político-ideológica.

A problemática da ideologia mantém-se através da temática da valorização dos feitos históricos, da exaltação do poder através das proeminentes figuras como a do Professor António de Oliveira Salazar, a do seu sucessor, o Contra-Almirante Américo Tomás e a do Presidente do Conselho, o Senhor Doutor Marcelo Caetano.

Do Doutor Oliveira Salazar, saíram estas célebres expressões: ”obedece e saberás mandar”; “Mandar não é escravizar; é dirigir. Quanto mais fácil for a obediência, mais suave é o mando” – slogans ideológicos como estes, predominaram os manuais escolares da época.

Um dos aspectos ideológicos patentes na obra (livro de leitura da 4ª classe) relaciona-se com a forma como as capitais das ex-colónias são exibidas nas ilustrações. São apresentadas, quer do ponto de vista arquitectónico quer do ponto de vista sociocultural, como uma autêntica metrópole, inserida no continente africano, deixando transparecer, de facto, um Portugal uno e indivisível. Essas representações sustentavam a tese de um Portugal multirracial e pluricontinental.

A partir da década de 50, começa-se a notar alguma preocupação no campo educativo, pois as exigências dos tempos modernos assim o determinavam. Por exemplo, pese embora os manuais da Língua Portuguesa, de uma maneira geral, estruturalmente mantivessem alguma homogeneidade, os do ensino Preparatório “Telescola” (1970-1972), eram inequivocamente de substancial inovação.

A partir do ano lectivo de 1969/70, os manuais escolares que eram editados e distribuídos pelo Ministério da Educação Nacional (Pt) e por outras editoras (Pt), passam a ser editados na província ultramarina de Angola, a cargo da Editora Lello e Irmão.

Com a queda do regime colonial, a implementação dos manuais coloniais cessa. Após a ascensão do país à independência em 12 de Julho de 1975, assiste-se a partir daí a uma reacção por parte dos novos dirigentes no que se refere à produção e comercialização de manuais escolares.

Os primeiros manuais escolares, pós-independência, começaram a ser produzidos inicialmente em 1976 pelo INED (Instituto Nacional da Educação e Desportos) somente para o Ensino Primário. Com o apoio técnico cubano, no ano lectivo de 1978/79, reestrutura-se melhor o sector educativo, introduzindo-se os novos manuais.

O manual escolar de Língua Portuguesa da 1ª classe intitulava-se, O MEU LIVRO DE LEITURA. O manual inicia-se com uma dedicatória aos pioneiros:

(Pós-colonialismo)

CAMARADA PIONEIRO

Colocamos este livro
Nas tuas mãos
É um maravilhoso
Instrumento de trabalho
Para a tua educação
Cuida dele com carinho
Pois os companheiros mais novos
Esperam recebê-lo das tuas mãos.
Obrigado

É interessante verificar que o termo “Pioneiro”, retirado do contexto político, é reinterpretado na semântica educativa como aquele que segue, que reproduz os modelos ideológicos instaurados. Por isso, o pioneiro era uma ponte de ligação entre a política e a escola. Representava a escola em cerimónias políticas, e representava a política nas cerimónias escolares.

Outros temas similares povoam o manual, como por exemplo os da política militante:

· Dia dos trabalhadores
· O dia 1 de Junho
· 12 de Julho
· O nosso País é livre
· O Dia 19 de Setembro
· O dia 30 de Setembro
· Os símbolos da Pátria
· Hino dos Pioneiros do MLSTP/OPSTEP
([6])

Para além dos conteúdos de natureza política, encontramos também, ao longo dos manuais escolares do período pós-independência, abundantemente, temáticas do âmbito sociocultural, da higiene e da saúde.

A) temática sociocultural

O Celestino e o Adriano são da cidade de Santana.
Quando querem passear, um assobia ao outro.
No domingo passado (,) deram um passeio à cidade capital. Passaram pelo Parque Popular onde viram dançar Ússua, Socopé e jogar (a) Cacete.
Assim, passaram uma tarde alegre. A Ússua, o Socopé e o jogo do Cacete são cultura do nosso Povo.

B) temática da higiene

A Higiene

Ao acordar (,) a Olívia grita para a mãe:

- Mãe, mãe! Já é tarde, tenho de ir à escola.
- Ainda é cedo, minha filha, levanta-te e arranja-te com calma.
Ela levanta-se e vai à casa de banho.
Em seguida, veste-se e penteia-se com cuidado para não deixar cair os cabelos no chão.
A mãe chama-a para tomar o pequeno-almoço.
Depois disso vai à casa de banho lavar a boca evitando assim que os dentes se estraguem.
Ao sair, despede-se da mãe e vai para escola».

C) Temática da saúde:

Ao sair da escola, o Ismael pergunta ao Vilhete:
- Já sabes que existe uma ervanária no nosso País?
- Sei, sim.
- Como é que ela se chama?
- Ela chama-se ervanária Ginseng.
- E o que é uma ervanária?
- A ervanária é uma casa comercial onde se vende(m) produtos feitos com ervas medicinais.
Esses produtos curam muitas doenças tais como: diabete(s), anemias, hepatite(s), tuberculose e outras mais.
Nesta casa (,) vende(m)-se também plantas medicinais da nossa terra, ou não?
- Não. Mas se ainda não se vende(m), devemos trabalhar para que (isto) aconteça.

O manual da primeira classe, fruto da cooperação entre a Fundação Calouste Gulbenkian e o MEC (STP) vem alterar significativamente a redacção dos textos, adequando-os à nova metodologia, a do Português Língua Segunda.

Tanto para o manual substituído como para o actual, os actores tiveram o cuidado de seleccionar as ilustrações e adequá-las ao conteúdo do texto. Comparando o manual da 1ª classe de 1979 ao de então, poder-se-á inferir que as matérias de ensino foram drasticamente reduzidas, satisfazendo os critérios adoptados para a implementação da metodologia do Português Língua Segunda.

Com a implementação dos manuais produzidos pela Gulbenkian/MEC (STP), dados recentes confirmam a sua caducidade, requerendo a sua urgente substituição a todos os níveis. Isto porque, se se está a verificar uma acentuada degradação no ensino da Língua Portuguesa e sua consequente repercussão no hábito linguístico da população estudantil ao nível da escrita e da oralidade. Esta situação só pode ter uma explicação: ou os manuais são produzidos não atendendo ao tempo de duração, ou então a parte económica que deveria sustentar a sua renovação não terá sido garantida. Não havendo dados que confirmem esta posição, tudo leva a crer que esses manuais já terão mais de 10 anos, após a sua adopção.

Um outro aspecto que empobrece os manuais de Língua Portuguesa em S. Tomé e Príncipe tem que ver com a parte ilustrativa. Nos manuais da 5a e 6ª classes do Ensino Secundário Básico, as ilustrações não ajudam na captação da atenção. As ilustrações são, na globalidade, a preto e branco, o que não estimula a atenção.

Os manuais da 5ª e 6ª classes, do ponto de vista pedagógico, provavelmente terão sido elaborados sob a dinâmica orientadora da nova pedagogia, sem realçar qualquer aspecto ideológico.

Na 6ª classe, o manual é composto por 8 unidades temáticas, para além da parte preambular, onde são apresentados exemplos de textos informativos sobre os conteúdos da lição.

As 8 unidades temáticas centram-se em torno dos seguintes itens: A Escola, A Família, OS Amigos, A Escola e Comunidade, OS Tempos-Livres, A Comunicação, O País, O Prazer de ler.

Todos os temas tratados no manual, embora já tenham sido referenciados em vários contextos educativos, a abordagem actual pouco difere da dos produzidos durante o colonialismo e pós-colonialismo. Os textos vão desde os clássicos como Almada Negreiros, José Mauro de Vasconcelos, Virgílio Ferreira, Pepetela, Teixeira de Sousa, ou Rui Cinatti, até aos modernos como Manuel Rui e Albertino Bragança.

Agora, vejamos, a partir dos excertos abaixo, algumas passagens dessas temáticas:

A) Escola
A escola

Pede-se a uma criança: “Desenha uma flor”. Dá-se-lhe papel e lápis. A criança vai sentar-se no outro canto da sala onde não há mais ninguém.
Passado algum tempo o papel está cheio de linhas. Umas numa direcção, outras noutras; umas mais carregadas, outras mais leves; umas mais fáceis, outras mais custosas. A criança quis tanta força em certas linhas que o papel quase que não resistiu.
Outras eram tão delicadas que apenas ao peso do lápis era demais.
Depois a criança vem mostrar essas linhas às pessoas: Uma flor (...).

Almada Negreiros, in “A Invenção do Dia Claro

A escola, em Almada Negreiros, ressalta o aspecto psico-pedagógico de uma aula na qual a criança inicia o seu percurso pedagógico. Este tipo de tema é também abordado no Livro da Primeira Classe de 1941, (p.41) “Jogando às Escolas”; no Livro de Leitura da Segunda Classe, 6ª Edição, 1958 (p.20), “O Quadro da Escola”; no Manual de Língua Portuguesa, 5ª Classe, República Democrática de S: Tomé e Príncipe, (p.11), “A Escola na Colina”; no Manual de Língua Portuguesa, 6ª classe, (pp. 9 e 55).

A abordagem de temáticas relacionadas com a “escola” serve para realçar a sua importância, enquanto espaço do exercício da escolástica. Entenda-se ensino realizado de acordo com o seu formalismo, seu tradicionalismo e a sua logomaquia([7])/o que nos remete para uma filosofia formalista, abstracta, teológica, da Idade Média, cujo modelo, ainda que alterado, conforme o enquadramento sociocultural de cada país, é o que ainda permanece.

B) Tempos-livres

Os tempos livres abrangem todas as actividades não escolares e familiares às quais a criança se entrega, a fim de se divertir e descansar. O tempo livre se enraíza no jogo infantil prolongado pela mesma criança: o tempo livre é a forma diversificada e aculturada do jogo([8]). Como exemplo de “tempos-livres”, vejamos o extracto de um conto tradicional cabo-verdiano, por João Lopes Filho:

O molho-de-capode

À noite houve baile em casa de Nhô Pirico. Na sala ornamentada de papel de seda e iluminada por candeeiros de petróleo, as damas ocuparam cadeiras dispostas junto às paredes. Trazendo roupas de tons escuros e lenços à cabeça, as senhoras sentavam-se nos lugares discretos, enquanto as mocinhas, em cabelo, procuravam dar nas vistas com os seus vestidos novos de cores vivas.

Mané Pala, organizador do convívio, informou eufórico que não se tratava de um “baile nacional” (ao qual todos teriam acesso), mas sim de uma confraternização especial em que até seria servido, de madrugada, um molho-de-capode e deu seguidamente a lista de convidados, pois aí não havia cabimento para os olhantes dançarem.
João Lopes Filho, Estória. Estória... Contos Cabo-Verdianos

Tempos Livres (Loisirs/Spare Time), é o período de tempo de que as crianças necessitam para se abstraírem do mundo formal da escola e da família, normalmente designado por (brincadeiras). A partir do texto dado, poder-se-á promover a interdisciplinaridade.

[1] Serviço de Acção Social Escolar.
[2] Não foi possível a reprodução da rubrica do Autor da obra LEITURAS COLONIAIS, de 1933, por esta prática se revelar pouco lícita.
[3] Sociograma: Em sociologia descritiva, este termo designa a figura que tem por objecto representar o conjunto das relações individuais entre os diferentes membros dum grupo
O sociograma serve-se duma técnica que visa estabelecer o diagrama das relações inter-individuais que constituem a estrutura dum grupo (...).
[4] Saraiva, Albano Alberto de Mira (1933), Leituras coloniais, p.28.
[5] Leif, J., Vocabulário Técnico e Crítico da Pedagogia e das Ciências da Educação; Editorial Notícias, p.208
[6] Organização de Pioneiros de S. Tomé e Príncipe
[7] Leif, J., Vocabulário Técnico e Crítico da Pedagogia e das Ciências da Educação; Editorial Notícias, p.149.
[8] Idem, p.425.

História da Educação em S. Tomé e Príncipe: O PROCESSO-ENSINO/APRENDIZAGEM

Extracto da Dissertação de Mestrado
Por:
Jerónimo Xavier de Sousa Pontes

O processo Ensino/Aprendizagem é uma moderna expressão didáctico-pedagógica, na qual a escola se vê desvinculada do seu papel único e exclusivo de “transmitir conhecimentos” através de um mestre-escola, e os alunos, mera peça, para onde são canalizados saberes.

A pedagogia moderna vê no professor um orientador das actividades lectivas. Entre este e o aluno desenvolve-se uma relação de intercâmbio, na resolução de tarefas ditadas pelos objectivos programáticos. O professor transmite e recebe informações que lhe ajudariam a interpretar determinados fenómenos. Com efeito, quantas não são as vezes em que um professor prepara as suas lições, perspectivando uma dada meta, e já na sala de aula, há um aluno que levanta uma certa questão ou apresenta uma dúvida para ser esclarecido?

Acontece que, muitas vezes, essa situação acaba por alterar substancialmente todo o percurso da lição inicialmente pensado. Por isso, o professor deve estar preparado, isto é, dotado de elementos teóricos que lhe possibilitem, por algum instante, desviar do objectivo previamente proposto, e esclarecer o aluno. Assim se fundamenta a importância da formação de quadros docentes.

Os fundamentos do processo ensino-aprendizagem são dos mais variados tipos. Então, de acordo com o plano curricular do Sistema Educativo são-tomense, em que modelo assenta o Processo Ensino – Aprendizagem? Por exemplo, «antigamente a escola preocupava-se com o ensino, por se julgar que ensino implicava sempre aprendizagem. A generalização do cumprimento da escolaridade e o aparecimento maciço do insucesso escolar chamaram a atenção para a situação do aluno e para os mecanismos da aprendizagem. Considerou-se então a necessidade de uma maior articulação entre as actividades de transmissão e as actividades de aquisição. Ensinar é sobretudo aprender. Ser professor é facilitar e orientar a aprendizagem, isto é, despertar o interesse e apoiar o aluno a relacionar as aprendizagens já realizadas e aquelas que lhe são postas» ([1]).

Num sistema educativo baseado em infra-estruturas degradadas, tecido social em luta permanente pela sobrevivência, com turmas do secundário com cerca de 70-80 alunos, é óbvio que não se pode falar do processo ensino-aprendizagem no sentido real do termo. Mas pode-se falar de alguma aprendizagem. Porque se trata de um processo algo complexo e joga em muito com a motivação individual de cada um. Por isso os estudantes são-tomenses, movidos pelas circunstâncias sociais, têm-se agarrado aos estudos com avidez, não desperdiçando tempo.
Actualmente, nas salas da Biblioteca Nacional, do Centro Cultural Português e do Arquivo Histórico, os estudantes têm recebido apoio técnico, materiais didácticos e manuais escolares, fruto da cooperação entre S. Tomé e Príncipe e a Fundação Calouste Gulbenkian. É também relevante frisar que a globalização tem contribuído para que, através da Internet, alunos são-tomenses colmatem grande parte de lacunas que, somente, através dos manuais nunca o conseguiriam.


OS MATERIAIS DIDÁCTICOS E OS MANUAIS ESCOLARES

Os materiais didácticos e os manuais escolares ([2]) são uma componente do Processo Ensino-Aprendizagem.

Um manual escolar é também um material auxiliar de estudo, por isso não passa de um meio para atingir a um fim. O seu uso varia substancialmente de disciplina para disciplina. Porque, certas disciplinas requerem mais que outras o uso do manual, como acontece com o ensino da leitura e da Língua Materna ([3]), (no caso são-tomense, o ensino da Língua Oficial/Língua Segunda) em que os alunos têm necessidade de textos.

Em certas disciplinas do curriculum como “História ou a Geografia, o manual pode oferecer leituras documentais. Na verdade, depois de ter feito observar a natureza e o meio ambiente, à criança, o livro funciona nesse contexto como complemento de informação; a criança reencontrará aquilo que já tinha descoberto por si mesma.

Assim, o manual, conforme a disciplina e as circunstâncias, fixa e coordena na memória as ideias e os factos desenvolvidos durante a lição e completa esta com úteis leituras.
Convenientemente utilizado, o manual é ao mesmo tempo um instrumento de consolidação e um instrumento de estudo inteligente.

Destas notas decorre que o mestre deve utilizar o manual com certa prudência. O erro frequente consiste em querer segui-lo passo a passo, quando na verdade se impõe uma constante selecção. O manual, auxiliar do professor (auxiliar precioso e mesmo indispensável), não pode todavia substituir o mesmo professor”([4]). Mas no caso são-tomense, sem os manuais seria catastrófico. Porque grande parte de professores não possui qualquer formação. Daí que, sem recurso ao manual, ainda que desvirtuando os preceitos pedagógicos, mais valeria, em contexto actual, substituíssem os próprios professores.

A escolha dos manuais escolares é (geralmente) efectuada após consulta aos professores – recomenda a pedagogia.

· Para o ensino primário, pelo director da escola, após consulta aos professores e com referência a uma lista estabelecida anualmente em conferência pedagógica;

· Para o ensino secundário, pelos conselhos escolares;

Em S. Tomé e Príncipe, é provável que isto se tenha verificado mas, que se saiba, só ao nível de disposição de uma lista do que deveria ser adoptado, e nunca a sua escolha em conferência pedagógica. Era a metrópole que ditava o que se podia aplicar no ultramar.

De 1975 a 1989, só havia manuais escolares ao nível do ensino primário, orientados pedagogicamente pelo modelo cubano. Esses manuais eram, para todos os efeitos, a que melhor organização apresentava. Ao nível do secundário, deixou de haver manuais escolares. As aulas passaram a ser feitas por meio de fotocópias de textos fornecidos pelo GEPP. Por isso deixou-se também de praticar o hábito de leitura.

Após o colonialismo, inicia-se um período de grande deserção no campo editorial. As casas particulares que importavam livros escolares como gramáticas, aritmética ou livros recreativos, deixaram de o fazer. Esta situação podia ter sido dirimida com recurso à produção de materiais escolares pelo MEC ou, como alternativa, o MEC que deliberasse pela aquisição desses materiais através da liberalização do mercado livresco, firmando contratos com editoras especializadas no assunto. Mas fornecer apontamentos, na altura, era muito mais prático e supostamente barato. Por isso, não havia qualquer livro de leitura em nenhum nível de ensino secundário. As aulas de Língua Portuguesa pendiam para a análise gramatical onde o esquema mattosiano e chomskyano de representação da frase em árvore e em reescrita, substituíam as de análise textual e de reflexão sobre a língua. Era um método considerado caduco e sem qualquer interesse para a aprendizagem da análise frásica ao nível do básico ou do secundário, rejeitado no sistema de ensino francês, adoptado pelo sistema português e transplantado para o ensino são-tomense pelos professores cooperantes portugueses, os primeiros a irem a S. Tomé e Príncipe após 25 de Abril de 1974.

A análise textual circunscrevia-se a excertos de obras literárias, tirados a stencil. Eram excertos de textos que faziam lembrar o período da reivindicação cultural e literária impulsionado por Léopord Sedar Senghor, León Damas, Aimé Césaire, mais tarde retomado por Francisco José Tenreiro e Mário Pinto de Andrade, nos anos 50.

O Liceu Nacional recebeu várias ofertas de manuais escolares (Língua Portuguesa) provenientes de Portugal. Mas depois de analisados, foi considerada desadequada a sua aplicação. Entretanto, sempre havia um ou outro professor que os recorria esporadicamente nas suas aulas, porque, na ausência de qualquer bibliografia adoptada, esse procedimento era menos o mal.

Com a cooperação entre o Ministério da Educação de Portugal/Fundação Calouste Gulbenkian e o MEC (STP), nasce o Projecto de Expansão e Melhoria Qualitativa da Língua Portuguesa, da 1ª a 11ª classes. Elaboraram-se manuais escolares novos, substituindo os antigos no sector primário, onde os textos eram manifestamente de temática político-ideológica. Esperava-se portanto, que os novos manuais viessem solucionar o problema da degradação do ensino, sobretudo no domínio da Língua Portuguesa. Na verdade, tem-se verificado que algo deve ter falhado quanto à aplicação da nova metodologia: a do Português Língua Segunda. Com efeito, alguns estudos já realizados concluíram que os que aprenderam através do método tradicional durante o colonialismo, ou mesmo os que estudaram após a independência através dos métodos globais ([5]) ou do método analítico-sintético ([6]), quer na sua versão fónica, quer globalística, tanto um como o outro apresentam uma estrutura linguística mais bem organizada do que os contemplados pelo Projecto “Expansão e Melhoria Qualitativa do Ensino da Língua Portuguesa – República Democrática de S. Tomé e Príncipe/Fundação Calouste Gulbenkian” que também terá implementado os mesmos métodos.

Ora se o projecto foi um trabalho em que do ponto de vista didáctico-científico não se apontam defeitos, então por que razão os alunos acabam o primário e o secundário sem saber ler nem escrever correctamente? Por isso tem havido muitas perguntas e escassas respostas sobre este assunto.
Um dos perigos verificados no secundário relaciona-se com a questão da falta de recursos humanos qualificados na aplicação correcta da Metodologia do Português Língua Segunda. No entanto, a dúvida põe-se, quando tentamos estabelecer baliza entre estes dois conceitos: Língua Segunda e Língua Estrangeira.
Ora, se ao Francês e ao Inglês são aplicadas as metodologias de uma Língua Segunda/Língua Estrangeira, será que para o Português, bem ou mal falado em casa, na rua, nos meios de comunicação social (rádio, televisão), língua da escola e do discurso oficial do poder, deve ser aplicada a metodologia duma Língua Segunda em analogia com aquelas que só são usadas pontualmente durante o horário curricular nas salas de aula?

Suponho que a dificuldade do ensino e uso incorrecto da Língua Portuguesa parte duma avaliação metodológica que se pensou correcta, mas que havia contornos que deviam ser estudados com alguma profundidade. Então, para satisfazer o estudo da Gulbenkian/MEC, (tido como hipótese correcta), reduziram-se drasticamente os conteúdos programáticos em nome de estímulo à aprendizagem, permitindo que, actualmente, a estrutura do português ficasse mais fragilizada.

A Língua Portuguesa, perante uma outra língua mais produtiva, tem contribuído para que os alunos, confrontados com a situação de produzirem uma estrutura linguística mais complexa como por exemplo a realização dos clíticos, a coordenação e a subordinação, o infinitivo flexionado, a perifrástica, e outras, e não o podendo realizar em português, que se tornou muito mais simplificado, vão socorrer-se duma outra estrutura linguística diferente da do português, a do crioulo. É neste contacto entre línguas diferentes em que o falante é alfabetizado numa e utiliza outra para comunicar, que se gera a contaminação.

[1] Gomes, Aldónio; Cavacas, Fernanda; Martins, Maria Adelaide; Ribeiro, Maria Angélica; Ferreira, Maria José; Grilo, Maria Judite; Guia do Professor de Língua Portuguesa, I Vol, 3º Nível, Serviço de Educação e Bolsas – Fundação Calouste Gulbenkian, PP. 2-2, LISBOA, 1991.

[2] Cormary, Henri; Dicionário de Pedagogia, Verbo, pp. 279-280 – na sua perspectiva, a “pedagogia moderna ergueu-se com força contra o trabalho intelectual livresco. Houve um tempo em que o manual escolar estava no centro do esforço pedagógico. Constituía um élan entre a criança e a realidade exterior e tornava-se assim um instrumento de saber formal verbal. O risco de tal utilização do manual é uma certa preguiça do espírito. Conhecemos as críticas que Rousseau dirigia já ao uso do manual «Nada de outro livro que não seja o mundo»; «Os livros são para as crianças o instrumento da sua maior miséria». Desde então, toda a evolução da doutrina pedagógica, todos os arranjos e reajustamentos dos programas e das instruções encontram com frequência a sua origem na incansável guerra contra o ensino livresco. O apelo à observação e à experiência em todas as disciplinas, a introdução nos programas dos trabalhos práticos e manuais, os encorajamentos cada vez mais explícitos dados pelas instituições oficiais aos métodos activos e às técnicas do estudo do meio local, etc., não têm outro sentido. Todavia, essa condenação do ensino pelos manuais escolares não pode levar a desconhecer que existe uma autêntica educação pelo livro, dado que lhe saibamos dar o lugar que lhe convém no sistema educativo. Cormary, Henri; Dicionário de Pedagogia, Verbo, pp. 279-280).

[3] A este propósito, consultar Ançã, Helena (1999), Da Língua Materna à Língua Segunda, Universidade de Aveiro, Noesis 51 – Jul./Set. 1999-Dossier.

[4] Idem, pp. 279-280

[5] Cf. Gomes, Aldónio; Fernandes, Amadeu; Cavacas, Fernanda – Guia do professor de Língua Portuguesa, l Vol., 1º Nível – Serviço de Educação e Bolsas, Fundação Calouste Gulbenkian/Lisboa – segundo estes autores, os métodos analíticos ou globais apresentam as seguintes vantagens:

Despertam, na criança, gosto pela leitura, visto que esta é precedida da compreensão;
Desenvolvem, activamente, os hábitos necessários a uma boa leitura;
Provocam rapidez de compreensão;
Estão de harmonia com a função globalizadora da criança;
Evitam, com eficácia, os erros de concordância

[6] Idem